“O berço balança sobre um abismo, e o bom senso nos diz que nossa existência nada mais é que uma réstia de luz entre duas eternidades de escuridão. Embora os dois sejam gêmeos idênticos, o ser humano em geral vê o abismo pré-natal com mais calma do que aquele para o qual se dirige (à velocidade de umas quatro mil e quinhentas pulsações por hora).”
Com essa frase Vladimir Nabokov abre sua magnifica autobiografia intitulada Speak, Memory ( Fala, memória ). Sem dúvida uma declaração essencialmente banal que reflete o pensamento de qualquer ateísta ou agnóstico, mas com a percepção de que a psique humana se concentra mais na eternidade futura do que na passada, e numa formulação audaciosamente bela e original. No entanto, ela está longe de revelar as profundezas da complexa espiritualidade de Nabokov, que, ao ser perguntado por Alvin Toffer se acreditava em Deus numa entrevista de 1963, assim respondeu aos 64 anos de idade: “Eu sei mais do que posso expressar em palavras, e o pouco que sou capaz de expressar não seria expresso caso eu não soubesse mais.”
A assertiva enigmática é típica do autor, mas demonstra que, apesar de desprezar todos os dogmas e todas as manifestações rituais de caráter religioso, ele abrigava um sentimento místico baseado na existência do sobrenatural. Apaixonado por padrões que via repetidos de forma surpreendente no mimetismo de suas queridas borboletas e em toda a natureza, Nabokov se aproximava da admissão de que existiria uma inteligência superior de onde fluíam aquelas maravilhas de outro modo inexplicáveis para ele. E contemplava a ideia de uma vida no Além, conceito presente em muitas de suas obras e patente no conto “As irmãs Vane”, que termina com uma mensagem por elas enviada depois de mortas. O mesmo transparecia em sua crença de que as pessoas seguiam um destino pré-traçado – por exemplo, que seu pai estava fadado a morrer com uma bala disparada pela arma de um assassino político.
Mas ninguém melhor que o próprio Nabokov para nos instruir sobre a possível imortalidade da alma: “Que a vida humana nada mais é que o primeiro episódio de uma alma em série, e que o segredo individual de alguém não se perde no processo de dissolução terrena, se tornam algo mais que uma conjetura otimista, e até mesmo mais que uma questão de fé religiosa, quando nos lembramos de que somente o bom senso nos faz negar a imortalidade.”