05/06/2015 – Fonte: Valor Online
Se você aprecia as edições nacionais de imponentes figuras literárias como Vladimir Nabokov, J.D. Salinger, Ian McEwan ou Philip Roth, muito provavelmente teve, em suas leituras, a interferência deste senhor elegante de 77 anos, aparentando quase dez anos menos, com leve sotaque carioca e treino de diplomata. Jorio Dauster, um dos mais respeitados tradutores brasileiros, é dos poucos que escapa ao anonimato da categoria, a começar pelas elogiadas traduções dos clássicos “Lolita”, de Nabokov, e “O Apanhador no Campo de Centeio”, de Salinger.
Com mais de 40 livros traduzidos no currículo, além de contos e outros textos, Dauster se diz diletante em literatura e tem uma carreira também notável como diplomata e executivo: representou o Brasil na Organização Internacional do Café e presidiu o Instituto Brasileiro do Café numa época em que a commodity ainda era carro-chefe das exportações brasileiras. Foi negociador da dívida externa nos anos 90, presidiu a Vale pouco após a privatização. Hoje, é um ativo consultor de empresas e ainda encontra tempo para compor músicas “de brincadeirinha”. A vida, diz ele, é uma única viagem, com a passagem só de ida. “Então, temos de aproveitar a paisagem.”
É com a vista da graciosa e monumental Ponte JK, à beira do Lago Sul, em Brasília, que nos encontramos, à porta do Gazebo, restaurante habitual de encontros de políticos e empresários. “Vamos almoçar; assim podemos tomar uma caipirinha”, havia sugerido o tradutor-diplomata-executivo, ao combinar este “À Mesa com o Valor”. Entramos e, acomodados em sala reservada, ele se queixa ao garçom por só haver cachaça amarela para o drinque. “Assim não pode. Tem de ser branca. Me traz uma com vodca, então.”
Dispensa as entradas do cardápio. “Não dá para viver de tradução, há quem faça profissionalmente, mas no meu caso é diletantismo mesmo.” Considera excessiva a carga horária exigida para viver do ofício. Prefere traduzir nas horas vagas. “É minha nave espacial, decolo com ela, trago sempre no computador; eu entro em alfa, e a qualquer hora.”
Ser diletante não é brincadeira. Acabou recentemente o que considera sua mais difícil tradução, “Lições de Literatura”, de Nabokov, que sairá pela Três Estrelas e lhe tomou mais de quatro meses de trabalho. Agora trabalha em um livro ainda inédito de Jonathan Franzen, sobre o qual mantém segredo e não quis nem contar o título. (Não adiantou: no Google pode-se ver que se chamará “Purity”, pureza, na tradução deste repórter).
Caprichoso, Dauster, como todo bom tradutor, não hesita em partir para soluções próprias, no esforço de respeitar a intenção dos autores que traduz. Reinventou uma poesia para um personagem de Salinger, ao ver que o texto, em inglês, se perderia na tradução literal. Onde outros optaram por “minha alma, meu pecado”, optou por “minha alma, minha lama”, na famosa apresentação de “Lolita”, em que Nabokov, após falso prefácio, usa o poder das aliterações, a cuidadosa repetição de fonemas, para descrever sensualmente a personagem que popularizaria o termo ninfeta.
Ele conta, orgulhoso, que, na última edição de “Lolita” em Portugal, a tradutora portuguesa adotou sua solução e lhe deu crédito. “A maior homenagem que podia querer.” Nabokov, uma paixão, é também um desafio: cada página tem, como defendia Flaubert, a “palavra certa”, amorosamente escolhida. Passar para o português esse preciosismo vocabular é ainda mais difícil por causa do empobrecimento da língua falada no Brasil, lamenta. “É uma vergonha, você tem mais livrarias em Buenos Aires do que no Brasil inteiro, e elas estão fechando, enquanto o país vê novela”, desabafa. “É evidente que a riqueza da língua, enorme, vai se perdendo”.
Dauster, solicitado para conselhos de administração de empresas, já foi considerado um “subversivo”, por suas ideias progressistas e ligações de um irmão com o movimento armado de oposição à ditadura. O diplomata enfrentou atritos com dirigentes do Itamaraty também por seu envolvimento, ainda no início da carreira, com a criação da Unctad, braço das Nações Unidas para o desenvolvimento, que levantou, em plena Guerra Fria, a discussão sobre os desequilíbrios globais entre o Norte e o Sul e deu espaço ao debate sobre o “Terceiro Mundo”.
Acabava de ser efetivada a ditadura no país. O jovem Dauster pediu uma licença de dois meses que a burocracia, incomodada com ele, transformou em seis (“como no pôquer, seus dois, mais quatro”, ironiza). Era o empurrão que faltava à carreira de tradutor. Já tinha começado, com dois colegas do Itamaraty, a tradução de “The Catcher in the Rye”, que queriam intitular “A Sentinela do Abismo”. Cada um havia cuidado de parte do livro, e, com a folga compulsória, Dauster aproveitou para dar unidade ao trabalho, que ganhou tom mais coloquial, com gírias cariocas da época. Mas a agente literária de Salinger não autorizou mudanças, e a obra saiu mesmo “O Apanhador no Campo de Centeio”, título exótico que fez Dauster temer – equivocadamente – pelo futuro das vendas. Hoje, ao citar a obra, evita ambas traduções: na conversa, o livro é, sempre, “o Catcher”.
Por indicação de um amigo, levaram o texto ao cronista Rubem Braga, que desconhecia Salinger e seu sucesso nos EUA. O sócio de Braga na Editora do Autor, Fernando Sabino, porém, conhecia. Comprou os direitos de tradução do livro, que se tornou um sucesso de vendas. Ganharam, os três, o equivalente a US$ 50,00.
Deu para comprar um par de sapatos. E adquirir o vício da tradução. O seguinte foi um livro complexo, “Fogo Pálido”, de Nabokov, que o levou a traduzir também “Lolita”. “Aquela primeira página depois do falso prefácio é uma das coisas mais lindas já escritas em qualquer língua”, diz ele, interrompido pelo garçom, que traz a caipirinha, com canudinho dispensado pelo diplomata. “Como dizia o Nabokov, você tem de ser mais que leitor, re-releitor, re-re-releitor. É difícil encontrar em uma Lolita uma página que não tenha um trecho espetacular, é uma ourivesaria”.
Dauster recebe regularmente, via Google Alerts, tudo o que sai na internet sobre Nabokov e Salinger. Após um gole na caipirinha, recomenda o último artigo que acaba de ler, da “The New Republic”, sobre o modo como a desajeitada e infantil vítima de pedofilia de Lolita foi transformada pela cultura americana, a partir da versão cinematográfica de Stanley Kubrick, em um modelo perverso de exuberante sexualidade adolescente que hoje inspira a cultura pop, de Britney Spears a Miley Cyrus.
“O Nabokov diz que Lolita é o livro mais moralista que já escreveu, e o cinema americano, naquela sociedade puritana, deformou o personagem.” Nabokov criou o termo Lolita e popularizou o substantivo ninfeta, lembra. “Um feito extraordinário, e faz aquilo sem uma palavra de baixo calão, sem uma descrição de cenas de sexo.” As pessoas são levadas a simpatizar com o “monstro”, que, no entanto, em certo trecho do livro, confessa notar, “toda noite”, o choro da menina que o acompanha, comenta Dauster, impressionado. A primeira edição de “Lolita” foi publicada em editora francesa quase clandestina, de material pornográfico. A ninfeta foi salva para a literatura por uma resenha elogiosa do afamado escritor inglês Graham Greene.
O fascínio de Dauster está voltado para o último livro traduzido do escritor russo, a coleção de aulas de literatura proferidas por Nabokov, por 20 anos, nos EUA, após a Revolução Russa expulsar sua família rica de Moscou e a ascensão nazista obrigar o escritor e sua mulher judia a abandonar os refúgios na Alemanha e, depois, na França. No livro, que deve ser publicado neste ano, Nabokov não só explica como desenha detalhes de clássicos como “Ulisses”, de James Joyce, e “Metamorfose”, de Franz Kafka. Nabokov defende que seus alunos conheçam visualmente os caminhos percorridos na Dublin de Joyce, a disposição das portas no quarto de K., o kafkiano personagem que acorda transformado em inseto, e até a provável forma do tal inseto que, garante o russo, não era barata, mas besouro.
“Nabokov foi especialista em borboletas, em Harvard. Faz questão de comentar a morfologia do inseto e, aí está a graça, emenda em observações de grande sensibilidade sobre a família de K., faz tudo isso sem ranço acadêmico, sem ser chato.” Dauster conta que uma dificuldade em traduzir as lições de Nabokov foi passar ao português trechos, às vezes páginas inteiras, de outros autores, vertidos para o inglês pelo autor russo. “Flaubert, Kafka, Proust, cada um tem sua voz”, explica. Para um único autor citado no livro, ele decidiu recorrer a uma tradução brasileira já existente: Joyce. “O último tradutor levou dez anos com o Ulysses; os outros resolvi por minha conta, mas esse não, seria irresponsável.”
Decido fazer um teste. Já que ele se queixa de que tradutores não têm reconhecimento, pergunto se se lembra do nome do tradutor em que se baseou para as citações de Joyce. Por segundos, Dauster vacila, desculpa-se, “agora não, a cabeça…” e emenda: “Galindo! Caetano Galindo! Agora te peguei”.
Dauster derrama-se sobre Nabokov, se não for interrompido pode passar toda a refeição falando do autor, de quem deve ser o maior tradutor mundial, com 17 obras, entre elas um conto e um ensaio. Fala da alegria de ter recentemente traduzido, para a coleção Penguin/Companhia das Letras, clássicos lidos por ele no original há décadas, como “Orlando”, de Virginia Woolf (“não tinha me convencido muito, mas, durante a tradução, vi que é extraordinário, interessantíssimo”).
Já se passaram 50 minutos, e nem pegamos o cardápio. “Dou preferência à conversa, me esqueço de comer”, diz. A caipirinha ainda ocupa mais da metade do copo. Ele pega o menu e decide pelo prato executivo: “Picadinho; adoro picadinho”. Diz que come pouco e dispensa a salada que vem com o prato. O fotojornalista Ruy Baron o acompanha e escolho o filé com molho rôti e risoto com grana padano. A salada e a sobremesa que acompanham o prato executivo do entrevistado foram cedidas ao repórter.
A conversa segue, literária, e Dauster, após a chegada dos pratos, até baixa a guarda que o leva, em todas as entrevistas, a evitar comentários com algum viés de crítica literária. “Não é meu ramo”, costuma dizer. Define-se como um “escritor vicário” (que fica no lugar do outro): “Sei que alguém escreveu um troço que acho muito bom e tenho enorme prazer em tentar descobrir como posso trazer isso para o português brasileiro.” Conta que gosta de imaginar Nabokov a olhar por cima do seu ombro para a tradução e, mesmo sem saber português, sugerindo: “Ó, a palavra em português é essa”.
Salinger é um contista excepcional, que, em suas últimas obras, se deixou contagiar por uma viagem mística que pesa sobre os enredos. McEwan, para Dauster, é “o maior escritor vivo”. O superlativo carrega o entusiasmo despertado por uma das últimas traduções feitas por ele, “A Balada de Adam Henry”, escrito sob inspiração de textos jurídicos lidos num jantar com altos magistrados americanos.
Ao falar de outro gênio literário que traduziu, John Cheever, Dauster vai além e analisa o modo como os EUA venderam ao mundo o sonho americano, mitificando a passagem da classe média branca para os subúrbios. No conto que fez questão de traduzir, “O Nadador”, de tons surreais, um sujeito resolve voltar para casa nadando pela sucessão de piscinas da vizinhança (rendeu filme admirável com Burt Lancaster, em 1968). “É como se eu resolvesse voltar daqui para minha casa no Lago Sul nadando pelas piscinas, só quem sem as cercas e muros.” Cheever expõe inconsistências desse mundo em tecnicolor de gramados abertos e casais sorridentes, mas sem pessoas negras. Dauster dá uma garfada em seu picadinho e se entusiasma ao comentar a falsa imagem construída sobre os avanços econômicos do pós-guerra (“antes da guerra havia uma favela no Central Park, sabia?”). Um mito, diz, sustentado mesmo durante a crescente desigualdade depois dos anos 70 – sobre a qual ele escreveu artigos analíticos em jornais, antes de legitimado pelo best-seller “O Capital no Século XXI”, de Thomas Picketty.
Temas econômicos são outra praia do cosmopolita tradutor tijucano, último presidente do Instituto Brasileiro do Café, que ajudou a fechar “de tão podre que era”. No IBC, Dauster conviveu com o mexicano Ángel Gurría, que acaba de ser eleito para a presidência da OCDE; e foi amigo do colombiano Juan Manuel Santos, que lhe disse que um dia se tornaria presidente da Colômbia. Eleito, em 2010, Santos convidou Dauster para a cerimônia de posse presidencial.
No governo Collor, para própria surpresa, Dauster foi chamado para chefiar a negociação da dívida externa do país, que decretara moratória anos antes e vivia a situação de pária no mercado financeiro internacional. Diz que não, mas é visível seu desconforto com o esquecimento a que se relegou o enorme trabalho de negociação da dívida pela equipe chefiada por ele, com integrantes como a economista Maria Sílvia de Bastos Marques. Foram os esforços dessa equipe que deram fim à moratória, garantiram a retomada parcial do pagamento de juros e abriram espaço para que o consórcio de bancos credores aceitasse cortar parte da dívida inflada por taxas draconianas impostas aos países emergentes. “O fracasso fede”, diz, ao especular sobre por que um dos poucos êxitos do governo Collor ficou soterrado pela má fama daquela gestão presidencial encerrada em impeachment.
Envolvido em consultoria de projetos, animado com as perspectivas de investimento de uma firma dos EUA no setor de energia solar no Brasil, Dauster é um analista severo da situação econômica e política do país. Termina a caipirinha e, espartano, pede água mineral sem gás. Enquanto espera, lamenta a falta de representatividade na política e defende correção no modelo de desenvolvimento. O país só voltará a crescer 4% a 5% ao ano se resolver urgentemente o financiamento à infraestrutura, e depende do Estado para isso, afirma. Como ex-presidente da Vale e ex-investidor no setor, garante: sem agência reguladora forte, o país não conseguirá expandir, como deveria, o uso de ferrovias necessárias para aumentar a competitividade de cargas.
Dauster pede café em lugar da sobremesa. O tradutor/investidor termina com o depoimento sobre o trauma de um provável investidor, a história de uma comitiva de Cingapura que levou à Região dos Lagos para conhecer oportunidades de negócios. Na volta da cidade de Araruama, o grupo se viu retido na estrada por mais de cinco horas por uma greve de policiais rodoviários (“policiais rodoviários!”). Na Ponte Rio-Niterói, um dos asiáticos se viu obrigado a resolver, na beira de estrada, longe de qualquer banheiro, seu problema pessoal de excesso de liquidez. “Imagine, um sujeito vindo de Cingapura, onde é proibido até mascar chiclete, que trauma!”, lembra-se, compadecido. “E você acha que, depois, ele mandou de volta algum e-mail? Nem um cartão-postal!”