Na sua vasta obra de ficção escrita em três línguas – centenas de poemas, dezoito romances, sessenta e cinco contos –, Vladimir Nabokov jamais descreveu um único ato sexual, mas nem por isso deixou de tratar do desejo sob todas as formas com que a libido subjuga os pobres mortais. No entanto, talvez só tenha ficado realmente famoso devido ao romance em que investigou o desejo como obsessão, o desejo como tara.
O roteiro central é bem conhecido, inclusive graças aos dois filmes que foram feitos com base no livro: Humbert Humbert, um professor francês de 37 anos, se apaixona por Lolita, menina americana de 12 anos e cópia perfeita do primeiro amor que vivera um quarto de século antes na Riviera. Para assegurar o acesso à filha, HH casa-se com a mãe dela, que morre atropelada por um carro pouco depois de ler o diário onde o marido registrara sua monstruosa atração por Lolita. Fazendo-se passar por pai e filha, os dois circulam por todos os Estados Unidos e se instalam por alguns meses numa pequena cidade, até que a menina foge com outro pedófilo. Três anos depois HH recebe uma carta de Lolita em que ela lhe pede ajuda, pois estava grávida e vivendo na pobreza com um jovem mecânico. Num encontro patético, a ex-ninfeta se recusa a voltar para a companhia dele e confessa a identidade do homem com quem havia escapado, o qual é posteriormente assassinado por HH.
É óbvio que este resumo faz tanta justiça ao livro quanto a visão de um bloco de mármore pode sugerir a forma que lhe será dada pelo cinzel do escultor. Como em toda a obra de Nabokov, o que importa é a combinação mágica de imagens e cores, seu cuidado de ourives na busca de cada palavra, sua capacidade de tomar uma fatia de vida e, mediante um jogo de espelhos, transmudá-la de forma até mesmo grotesca para chegar aos limites da experiência humana.
A característica mais notável de Lolita é que, lidando com um tema tão sensível, Nabokov sequer tangencia o pornográfico e, muito pelo contrário, constrói sem pieguice uma fábula claramente moralista. Mas o faz a seu modo: cabe à garota, que perdera a virgindade na colônia de férias onde HH vai buscá-la após a morte de sua mãe, a iniciativa da primeira relação sexual; é o próprio HH que, escrevendo na prisão, mais duramente condena a bestialidade de seus atos, as torturas que sua inesgotável lascívia haviam infligido à menina, embora não deixe de assinalar que, em outros tempos e outras culturas, a ligação entre eles nada teria de anormal; e é através do assassinato de seu “duplo” que ele se desfaz do passado.
Mas, acima de tudo, a verdadeira redenção de HH está em que o desejo lúbrico pela ninfeta Lolita se transfigura num amor sem limites pela mulher Lolita. E só mesmo nas palavras do autor se pode entender com que força explode essa paixão.
De trás do barraco de Bill, o rádio de alguém que voltara do trabalho levou até nós uma música que falava de loucura e destino, e lá estava ela com sua beleza destroçada, as veias saltadas nas mãos estreitas de adulta, a pele arrepiada nos braços brancos, as orelhas sem viço, as axilas descuidadas, lá estava ela (minha Lolita!) irremediavelmente gasta aos dezessete anos, com aquela criança que dentro de seu ventre já sonhava em ser um sujeito importante e se aposentar no ano 2020 – e fiquei olhando para ela, sabendo, tão lucidamente como sei que vou morrer um dia, que eu a amava mais do que tudo o que jamais vi ou imaginei neste mundo, ou que possa esperar em qualquer outro. Ela era apenas um traço fugaz de perfume, o eco de uma folha morta, quando comparada à ninfeta sobre a qual eu rolara outrora gemendo de prazer; um eco à beira de uma ravina acobreada, com uma floresta longínqua sob o céu lívido, folhas marrons sufocando o riacho, um derradeiro grilo nas ervas ressequidas… mas, graças a Deus, não era apenas esse eco que eu venerava. Aquilo que eu costumava acariciar entre as vinhas emaranhadas de meu coração, mon grand péché radieux, estava reduzido a sua essência: todo o resto, o vício estéril e egoísta, fora abolido, amaldiçoado. Podem zombar de mim, ameaçar de evacuar o tribunal, mas até que eu seja amordaçado e semi-asfixiado continuarei a proclamar aos brados minha pobre verdade. Insisto em que o mundo saiba o quanto amei minha Lolita, esta Lolita, pálida e poluída, carregando o filho de outro homem, mas ainda com os mesmos olhos cinzentos, os mesmos cílios cor de fuligem, os mesmo tons de castanho e amêndoa, a mesma Carmencita, ainda e sempre minha! Changeons de vie, ma Carmen, allons vivre quelque part où nous ne seron jamais séparés. Ohio? Os ermos de Massachusetts? Não importa, mesmo que teus olhos fiquem embaciados como os de um peixe míope, mesmo que teus mamilos inchem e se rachem, mesmo que se macule e rasgue teu jovem e adorável delta, tão delicadamente aveludado… mesmo então eu enlouqueceria de ternura à simples vista de teu rosto amado e lúrido, ao simples som de tua voz rouquenha, minha Lolita.