Ao contrário do que ocorre em outros países, no Brasil o ofício do tradutor é desmerecido quando não de todo ignorado. Nas resenhas de obras literárias recém-lançadas, já tão poucas em nossa imprensa, é raríssimo que haja algum comentário sobre a tradução. Sendo assim, muitos me perguntam, por que você traduz? E só recentemente, com uma bagagem de mais de oitenta livros que inclui autores como Salinger, Nabokov, McEwan, Franzen, Rushdie, Virginia Woolf e dezenas de outros mestres, realmente parei para refletir. A resposta na verdade é bem simples. Meu pai médico e minha mãe professora de filosofia eram amantes da leitura e, já com treze, catorze anos, eu lia Balzac, Dostoiévski, o que quer que estivesse por cima das mesinhas ou nas estantes. Tendo a felicidade de haver sido criado numa era sem televisão, bem cedo me encantei pela literatura. Mas logo reconheci que não poderia ser um criador de ficção graças à incapacidade de declarar, como Castro Alves em Mocidade e morte, que “sinto em mim o borbulhar do gênio” – e, em vez de ser um escritor medíocre, descobri em certo momento que sentia imenso prazer em transpor para o português do Brasil as obras que me empolgavam.
Traduzir é sempre um prazer por duas razões essenciais. A primeira é o fato de ter um temperamento lúdico em que vejo cada tradução como um enorme quebra-cabeça onde todas as palavras são de fato pecinhas a serem colocadas no lugar certo para que surja, no final, o texto transmudado para o vernáculo. Nesse tipo de jogo, por exemplo, eu também gosto muito de traduzir livros que não li porque vou me surpreendendo com o texto à medida que nele trabalho. E, ocasionalmente, encontro uma pérola na ostra, como quando, naquela página inicial antológica em que Humbert Humbert define Lolita como luz de sua vida, temos em inglês o poderoso “my sin, my soul” com dois monossílabos sibilantes, que perderia toda a força estilística na versão literal de “meu pecado, minha alma”. Ocorreu-me então, exercendo o mínimo de liberdade a que me permito, “minha alma, minha lama”. E não é que uma recente tradutora do livro em Portugal aproveitou o achado e o reproduziu em seu texto (fazendo o devido reconhecimento na introdução)?
Esse “mínimo de liberdade” significa, por exemplo, jamais eliminar alguma frase ou inserir coisas que não constam do original, conquanto, em casos excepcionais, não haja alternativa senão substituir uma expressão idiomática ou um trocadilho intraduzível por algo que tenha a mesma conotação em nossa língua. Outra faceta interessante da tradução é que cada obra corresponde a um tipo diferente de desafio, desde o tom solene de Henry James ao linguajar necessariamente escrachado de James Baldwin quando descreve vidas conturbadas no Harlem. O tradutor é obrigado a dar um salto mortal quando passa de um texto escorreito e preciso de Ian McEwan para Belos e malditos de Scott Fitzgerald, que barrocamente apõe dois ou três adjetivos a cada substantivo e um ou dois advérbios a cada verbo. Para mim, a graça do ofício está exatamente em lidar com essas diferenças, algo semelhante ao músico que interpreta à tarde uma peça clássica numa orquestra sinfônica e, à noite, participa de uma roda de choro. Mas sou obrigado a reconhecer que sempre dediquei um cuidado excepcional aos livros de Nabokov porque neles, como nos de seu adorado Flaubert, não há uma palavra posta no papel por acaso.
No entanto, o crucial é que o tradutor não pode sentir que está “enfrentando” o autor, devendo, isto sim, criar com ele uma forma de parceria mental. Ajuda conhecer a vida e o tempo do escritor, porém o bom mesmo é penetrar de corpo e alma no texto e, pouco a pouco, discernir a arquitetura do edifício ficcional, quais os materiais semânticos que estão sendo usados, qual a melhor correspondência daquilo com o vernáculo. Por isso, é sempre prazeroso voltar a trabalhar com algum autor, sentindo a mesma alegria que se tem ao visitar um amigo: já conhecemos certos truques de estilo, certas construções mais costumeiras, até mesmo certas manias. E, às vezes, sobretudo quando se trabalha à noite, é possível imaginar que o autor sussurra aquela palavra que você estava procurando em vão.
Graças a essa relação mágica que pode se estabelecer entre escritor e seu intérprete, entendo que o produto ideal é um texto que faça o leitor brasileiro sentir que está lendo algo recentemente escrito em português. E isso, repito, sem tomar liberdades com o original, respeitando o tom e o estilo do autor, sendo tão literal quanto possível. Não tenho nenhuma fórmula ou receita que garanta esse efeito, mas, como só traduzo do inglês, sinto a necessidade de mudar com grande frequência a ordem das palavras ou das orações numa frase, assim como, obviamente, reduzir ao mínimo os pronomes pessoais obrigatórios no original. Outra necessidade é encontrar equivalentes no vernáculo às expressões idiomáticas, que se tornam ridículas quando traduzidas literalmente por quem não as conhece. São coisas assim, muitas vezes pequenas, que, acumuladas, tornam o texto mais fácil de ler e fazem toda a diferença. E um bom teste é, na dúvida, ler o que foi traduzido em voz alta: o ouvido é mais exigente que os olhos.
Enfim, acho que a tradução teve e tem importância na minha vida por oferecer uma janela através da qual posso enxergar um outro mundo riquíssimo que nada tem a ver com as preocupações cotidianas – o que no fundo constitui a razão de ser de toda a literatura. Mas costumo dizer que a tradução é minha nave espacial e, em último caso, um aparelho de ginástica neurônica que combate a senilidade em todas as suas formas. E, com as devidas vênias que aprendemos com nossos eminentes juristas, confesso que nunca li um livro teórico sobre tradução, e não pretendo fazê-lo.