Encapsular o gênio literário de Philip Roth em alguns parágrafos é quase tão impossível quando conter um tsunami numa piscina. Com trinta e um livros publicados em mais de meio século de atividade, Roth ocupa um espaço privilegiado no panteão dos maiores escritores norte-americanos da segunda metade do século XX, ao lado de Bellow, Updike, Mailer, Malamud – e, por que não, de meus favoritos Salinger e Nabokov (com a distinção adicional de não ter sido laureado com o Nobel de Literatura, só conferido ao primeiro nome dessa modesta lista). Porém Roth talvez tenha ido mais fundo que todos os demais ao usar com frequência um humor cáustico para penetrar em todos os desvãos do ser humano, desde sua identidade cultural e impulsos sexuais até sua relação com a decadência física e a morte, enquanto também criticava duramente o fracasso do “American dream” que sua geração tinha vislumbrado após o término da Segunda Grande Guerra.
Criado numa comunidade judaica de classe média em Newark, ele e seus colegas descendiam de avós que haviam chegado aos Estados Unidos paupérrimos e sem falar uma palavra de inglês, mas de pais que já haviam se adaptado externamente aos hábitos locais embora muitas vezes falassem iídiche em casa e sempre frequentassem as sinagogas. Apesar de viver praticamente num gueto cultural e de ter consciência da discriminação imposta pelos góis (que restringiu o avanço de seu esforçado pai numa grande firma de seguros), Roth, como muitos outros judeus com trajetórias similares, se sentia um cidadão norte-americano pleno, o que implicava o abandono de rituais religiosos, de costumes seculares e de um modo de pensar que ele julgava confinador.
Essa questão crucial da identidade está presente em boa parte de sua obra, mas só aflorou de modo revolucionário no terceiro romance, publicado em 1969. Em O complexo de Portnoy, um judeu de 33 anos revela, numa linguagem repleta de obscenidades, sua fixação edipiana e seus problemas sexuais, inclusive várias práticas de masturbação que chegam a envolver uma peça de fígado comprada no açougue e que será mais tarde consumida no jantar. A discussão franca da vida numa família tipicamente judia lhe valeu a duradoura e virulenta hostilidade dos segmentos mais conservadores da comunidade, gerando inclusive a falsa acusação de ser antissemita.
Os temas fundamentais de Roth são retomados mais tarde sob uma forma realista ou francamente satírica, mas os relatos semiautobiográficos foram envoltos numa cortina de fumaça graças a uma série de alter egos usados pelo autor. O principal deles é Nathan Zuckerman, que surge pela primeira vez no romance Minha vida de homem onde é o personagem de um escritor chamado Peter Tarnopol (sendo assim, de início, um alter alter ego!); no entanto, reaparece depois de forma mais sólida em nove romances como protagonista ou narrador. Outro alter ego é David Kepesh, presente em três romances. Esse jogo de espelhos atinge o clímax em Operação Shylock, no qual um personagem chamado Philip Roth e assemelhado ao autor encontra em Israel um sósia e impostor que se apropriara de seu nome e reputação para levar de volta à Europa os judeus israelenses, num movimento contrário ao sionismo. Mas o próprio Roth se encarregou de embaralhar as cartas ao dizer: “Escrevo ficção e me dizem que é autobiografia. Escrevo autobiografia e me dizem que é ficção. Sendo assim, como sou tão obtuso e eles tão inteligentes, que decidam por si próprios o que é o quê”.
No entanto, os críticos são quase unânimes em dizer que os melhores romances são aqueles em que Roth aumentou a abertura de sua lente ficcional para retratar criticamente as grandes conturbações sociopolíticas vividas pelos Estados Unidos nas últimas décadas do século passado, em especial a forte reação contra a guerra no Vietnã, Watergate e o processo de impeachment contra Bill Clinton devido a suas peraltices com Monica Lewinski. Esses romances, que marcaram a maturidade de Roth como escritor, foram publicados entre 1997 e 2000, e compõem a chamada “trilogia americana”, tendo como narrador o alter ego Nathan Zuckerman. No primeiro, A pastoral americana, vê-se como a vida de um ex-atleta conceituado e rico homem de negócios é destruída depois que a filha se torna uma revolucionária e planta bombas em lugares públicos, matando inocentes. O segundo, Casei com um comunista, tem como foco principal a caça às bruxas gerada pelo macartismo, mas revela também como a sociedade norte-americana ainda continuava a tratar os negros e os judeus como cidadãos de segunda classe. O terceiro, A mancha humana, relata a trágica reviravolta na vida de um professor universitário que é negro e se faz passar por judeu branco, servindo para mostrar a falsa moralidade que impregnava a cultura do país e se refletia de forma contundente na mesquinhez dos círculos acadêmicos.
Depois disso, Roth ainda publicou seis romances, utilizando um estilo mais seco e relatos mais breves para refletir como as pessoas comuns podem ter suas vidas estraçalhadas por decisões impulsivas ou por eventos que fogem inteiramente a seu controle. Em 2012, dando por encerrada sua carreira, afirmou numa entrevista ao New York Times: “Sabia que não iria ter outra ideia boa, sei que não vou escrever tão bem como escrevia. Não tenho a energia para aguentar a frustração. Escrever é frustração.” Mas, pouco meses antes de morrer, falando ao mesmo jornal, Roth mostrou que seu espírito continuava tão indomável quanto antes ao assim caracterizar Donald Trump: “uma imensa fraude, a soma diabólica de suas deficiências”, um indivíduo “desprovido de tudo exceto a ideologia oca de um megalomaníaco”.
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Repasso a seguir, por ordem de publicação nos Estados Unidos, as seis obras de Roth que tive o prazer de traduzir.
Quando ela era boa (1967) é um melodrama de família que se baseia na experiência de Roth com sua primeira esposa, uma típica WASP (branca, anglo-saxã, protestante). É também o único livro do autor em que não há um único personagem judeu e tem como principal protagonista uma mulher, no caso uma figura neuroticamente moralista que termina por se destruir ao tentar reformar todos os homens a seu redor.
Incidentalmente, Roth é com frequência acusado de misoginia, mas talvez não lhe tenham faltado razões para retratar de forma pouco simpática as personagens femininas. Afinal de contas, se livrou de uma típica mãe judia, para quem a limpeza era uma graça divina, e foi cair nos braços de uma megera gói que infernizou sua vida durante muitos anos e com quem só se casou quando ela apresentou uma prova falsa de que estava grávida. Mais tarde, após um longo relacionamento amoroso, se casou com a grande atriz Claire Bloom, mas as coisas acabaram mal quando Roth passou a viver mais tempo com ela na Inglaterra. Depois do divórcio, Claire publicou um livro de memórias em que o acusou de vaidoso e egotista, havendo até impedido que a filha que ela tinha de um casamento anterior com o ator Rod Steiger fosse morar com o casal. Entretanto, muitos críticos acham que Roth foi às forras ao retratá-la como Eve Frame, a mulher antissemita que destrói o principal protagonista de Casei com um comunista.
O professor do desejo, de 1977, relata a juventude e a vida acadêmica de David Kepesh (um dos alter egos de Roth), que, na faculdade, se considerava “um libertino entre os doutos, um douto entre os libertinos”. Trata-se na essência de um mergulho burlesco em todas as fantasias sexuais do protagonista (e talvez do autor), mas, obviamente, há muito mais que erotismo nessas vívidas páginas de Roth, inclusive uma visita a Praga para melhor conhecer os locais em que viveu Franz Kafka.
Os fatos e Patrimônio, publicados respectivamente em 1988 e 1991, são obras autobiográficas que revelam muito sobre o caráter e personalidade do autor. No primeiro, Roth descreve sua infância tranquila nas décadas de 1930 e 40, sua educação universitária, o tempestuoso relacionamento com a primeira mulher, seu embate com a comunidade judaica por causa dos primeiros livros, em especial O complexo de Portnoy. Patrimônio, ao relatar o desenvolvimento do tumor no cérebro que matou seu pai, conduz inevitavelmente a uma profunda e angustiante análise sobre o relacionamento dos dois e as provações que a medicina moderna impõe aos que precisam cuidar de pacientes terminais.
Em Indignação, o penúltimo romance publicado em 2008, um jovem estudante judeu de Newark vai cursar uma universidade em Ohio a fim de escapar do pai sufocante, um açougueiro kosher que tem um medo doentio dos perigos que a vida adulta guarda para o filho. Lá, o protagonista se apaixona por uma moça que já tentara o suicídio e passa a ter confrontações cada vez mais violentas com as autoridades universitárias, sobretudo por quererem obrigá-lo a frequentar os serviços religiosos quando ele se declara ateu. Finalmente expulso da universidade, é recrutado pelo Exército e, meses antes de completar vinte anos, morre na guerra da Coreia. Escrito numa prosa simples e direta, Roth mostra como as escolhas impetuosas de um jovem raivoso podem ter consequências trágicas quando ele não consegue se fazer compreender pelos adultos que o cercam.
Nêmesis, seu derradeiro romance, foi publicado em 2010. Retrata o drama de um jovem que é responsável pelo pátio de recreio de uma escola num bairro judeu de Newark e vê seus pupilos ameaçados por uma brutal epidemia de poliomielite no verão de 1944, quando não havia vacina para tal doença e suas vítimas morriam ou ficavam aleijadas. Os dilemas existenciais e religiosos que o protagonista enfrenta se multiplicam quando ele próprio contrai a enfermidade e acredita que infectou algumas crianças de quem cuidava numa colônia de férias. Roth aqui, pela última vez, nos expõe magistralmente as fragilidades da condição humana.
Por Jorio Dauster