Sou um problema, não um homem – os acertos e desacertos de J.D. Salinger

Meu relacionamento com a literatura de J. D. Salinger vem de longe e foi fator decisivo para que eu me tornasse um tradutor diletante, tendo vertido mais de oitenta obras, de autores como Vladimir Nabokov, Philip Roth, Virginia Woolf, Salman Rushdie e muitos outros, sem falar no próprio Salinger.

Em 1957, eu cursava sem entusiasmo o primeiro ano da faculdade de direito, com mais horas gastas nos salões de bilhar do que nas salas de aula, quando minha irmã mais velha me convidou para passar uns tempos em Washington, onde ela, casada com um diplomata, estava morando. Aos 19 anos, aceitei de bom grado a chance de mudar de ares e lá passei um ano.

Foi nessa época que li pela primeira vez The catcher in the rye, por indicação do meu cunhado. O livro de Salinger fora lançado em 1951, e já se tornara objeto de um verdadeiro culto, idolatrado por milhões de adolescentes que se identificavam com o protagonista, Holden Caulfield, devido à sua rebeldia contra tudo que havia de fajuto (phony) no mundo adulto. Expulso da escola, o rapaz de 16 anos vaga dois dias pelas ruas de Nova York antes de sofrer um sério colapso nervoso e ser internado numa clínica psiquiátrica.

De volta ao Rio de Janeiro, encontrei por acaso um velho amigo do Colégio Militar, Álvaro Alencar, que por coincidência pensava em fazer exame para o Instituto Rio Branco (que eu já frequentava). Conversando sobre literatura, descobrimos que ambos éramos vidrados no livro de Salinger, e surgiu daí a ideia de uma tradução a quatro mãos, porque ninguém no Brasil parecia ter notícia da existência daquela obra, já tão popular no mundo inteiro.

O projeto rendeu, obviamente, mais rodadas de chope do que linhas no papel, até que, por volta de 1962, quando já éramos diplomatas, pusemos mãos à obra. Foi então que soubemos que Antônio Rocha, alguns anos à nossa frente na carreira (e ele próprio escritor), estava também traduzindo o Catcher: tratamos de “recrutá-lo”, resultando daí o trabalho insólito a seis mãos, com um caráter totalmente amadorístico, uma vez que a tradução não fora encomendada por nenhuma editora, e nós nem sabíamos o que fazer com ela depois de pronta.

Em 1964, depois do golpe militar, fui considerado subversivo por haver lutado pela realização de uma conferência da ONU que pôs a nu o conflito Norte-Sul entre países ricos e países subdesenvolvidos, quando os Estados Unidos queriam garantir o alinhamento automático do Brasil na Guerra Fria. Sem ocupar nenhuma função no Itamaraty enquanto era submetido a uma comissão de investigação, fiquei em casa por seis meses. Como meus dois colegas haviam sido transferidos para postos no exterior, passei inúmeras horas revendo a tradução e cuidando de homogeneizar a linguagem. Além disso, era clara a necessidade de fazer justiça a Salinger, mestre do diálogo, que representava no Catcher sem dúvida o depoimento de um adolescente gravado na clínica onde foi internado. Assim, como cada frase tinha de passar pelo teste do ouvido, praticamente só foi usada a adversativa “mas”, a fim de caracterizar a fala de um rapazote. Outro problema eram as gírias, exigindo certa dose de adivinhação para apostar naquelas que, como “bacana”, teriam vida mais longa.

Sem saber o que fazer com a tradução pronta, alguém me aconselhou a levá-la a Rubem Braga, que juntamente com Fernando Sabino e Walter Acosta era dono da Editora do Autor. Fui recebido na famosa cobertura de Ipanema com imensa cordialidade e um uísque de primeira, porém o grande cronista nunca tinha ouvido falar em Salinger e a decisão de publicar nossa tradução ficou a cargo dos outros sócios. Menos de um ano depois, em 1965, a editora lançou o livro, reeditado inúmeras vezes, aqui como no exterior.

Em geral, traduzo o título literalmente, mas a decisão final é obviamente da editora, que comercializa o produto. No caso de The catcher in the rye, o problema consistia em que, até mesmo em inglês, o título só era compreensível depois de se ler o livro, e mesmo assim com bastante atenção. No Brasil, a palavra “apanhador” se referia sobretudo aos gandulas num campo de futebol, enquanto o centeio só aparecia no pão dos ricos. Daí havermos proposto à editora o título A sentinela do abismo, a partir do mesmo trecho do livro em que Holden Caulfield diz à irmã Phoebe que, quando crescesse, gostaria de

ficar escondido num campo de centeio para evitar que as crianças que nele brincavam pudessem cair num despenhadeiro.

A editora americana recusou nossa sugestão e de nada adiantou eu tentar convencer uma agente de Salinger, em Nova York, sobre o absurdo que era o título em português. A Editora do Autor foi obrigada a aceitar a versão literal. Mais tarde compreendi por que o autor passara a exigir tal coisa: em espanhol, tascaram um El cazador oculto, com uma conotação de morte e violência absolutamente contrária ao espírito da obra. Em francês, adotaram o título L’attrappe-coeurs, o meloso “pega corações”, quando a língua de Verlaine já tem um attrape-mouche (pega-moscas). E, em Portugal, o hilário Uma agulha no palheiro desafia qualquer interpretação racional.

O livro foi censurado em muitas cidadezinhas retrógradas dos Estados Unidos por usar palavras de baixo calão. No Brasil, deixou de ser incluído na lista de leitura de certas escolas depois que se soube que o assassino de John Lennon levava no bolso um exemplar da obra ao cometer o crime, em 1980. Isso comprova que não há limites para a loucura humana, mas, o que é igualmente grave, também para a ignorância humana.

Depois disso, ainda cotraduzi com Álvaro Alencar as maravilhosas Nove estórias de Salinger, publicadas pela Editora do Autor em 1969. Convidado a verter as duas outras obras que o escritor já então recluso tinha concordado em publicar – Raise high the roof beam, carpenters and Seymour: an introduction e Franny & Zooey – declinei por ter sido removido para o consulado-geral em Montreal. No entanto, muitos anos depois, tive a alegria de fazer nova versão de um desses livros, que então recebeu o título de Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour: uma apresentação.

Nascido em Manhattan no dia 1º de janeiro de 1919, Jerome David Salinger teve uma vida muito turbulenta, que marcou de forma profunda sua obra, tanto a já conhecida do público quanto a que ele tentou banir e a que ainda aguarda para ser revelada. Seu pai, chamado Solomon (Sol), descendia de judeus da Lituânia e era comerciante de

queijos kosher. A mãe, Marie, nasceu em Iowa de antepassados irlandeses e escoceses, porém se converteu ao judaísmo (e adotou o nome Miriam) ao se casar. O escritor teve uma irmã mais velha, chamada Doris Jane Salinger.

Em 1932, a família se mudou para um apartamento na elegante Park Avenue, e Salinger frequentou uma escola particular onde, apesar de não se destacar como estudante, demonstrou um talento inato para o teatro, embora o pai se opusesse à ideia de que ele

se tornasse ator, pois desejava que seguisse seus passos como comerciante. Mais tarde, foi aluno interno na Academia Militar Valley Forge, na Pensilvânia, onde começou a escrever contos à noite, debaixo dos lençóis, com a ajuda de uma lanterna. Mais uma vez considerado um estudante medíocre, formou-se em 1936, foi admitido na Universidade de Nova York, que abandonou no ano seguinte – e cursou em 1938 um semestre no Ursinus College, também na Pensilvânia. Forçado pelo pai a conhecer profundamente o comércio de importação de presuntos, trabalhou para uma empresa do ramo em Viena e Bydgoszcz, na Polônia. Talvez a repugnância que lhe causaram os matadouros o tenha levado a procurar outra carreira e se tornar vegetariano.

Em 1939, frequentou um curso de escrita na Escola de Estudos Gerais da Universidade Columbia e, ao final do segundo semestre, subitamente se destacou com três contos, um dos quais, The young folks (Gente jovem), foi publicado no número de março-abril de

1940 da revista Story. Por essa época, Salinger namorou Oona O’Neill, a linda filha do famoso dramaturgo Eugene O’Neill que foi eleita Debutante do Ano em 1942. Ela e o escritor frequentaram as mais badaladas boates onde se reunia a elite de Nova York. Separaram-se quando ele foi fazer seu treinamento militar longe de Nova York e Oona seguiu para Hollywood a fim de realizar testes cinematográficos. Lá, aos 18 anos, ela se casou com Charlie Chaplin, então com 54 anos, com quem teria nada menos que oito filhos. Salinger só tomou conhecimento da “traição” pelos jornais e escreveu uma carta furiosa para a senhora Chaplin, que nunca foi respondida.

Em 1941, Salinger lançou-se de vez na carreira literária e submeteu sete contos à prestigiosa The New Yorker. Todos foram rejeitados. Até que em dezembro de 1941 a revista aceitou Slight rebellion off Madison (Pequena rebelião na Avenida Madison), onde apareceu pela primeira vez um conturbado adolescente de Nova York chamado Holden Caulfield. Mas, para grande tristeza do autor, a revista suspendeu a publicação do conto depois do ataque japonês a Pearl Harbor por considerar o tema demasiado frívolo. Só veio a publicá-lo em 1946, após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Recrutado pelo Exército em 1942, Salinger serviu como agente de contrainteligência, interrogando prisioneiros graças a seu domínio do francês e do alemão. Desembarcou na Praia de Utah, na França, no Dia D, carregando na mochila o rascunho de passagens

de O apanhador no campo de centeio, e participou da campanha das tropas americanas em toda a longa marcha que atravessou as Ardenas e o conduziu até a Alemanha no ano seguinte. Uma das raras lembranças positivas daquele período, como ele definiu, foi o encontro com o correspondente de guerra Ernest Hemingway em Paris e, mais tarde, durante a batalha na Floresta de Hürtgen, onde morreram 34 mil soldados americanos. Os milhares de camaradas mortos no curso da campanha tingiram de amargura as passagens mais tarde usadas no romance, que ele continuou a elaborar mesmo durante os bombardeios, levando sua máquina de escrever para debaixo da mesa.

Em abril de 1945, Salinger entrou no campo de extermínio de Kaufering IV, parte do complexo de Dachau, onde viu pilhas de cadáveres de judeus semicarbonizados. Um dos poucos comentários sobre o que testemunhou como combatente foi feito certa vez à

sua filha: “Você nunca realmente elimina do seu nariz o cheiro de carne queimando, por mais tempo que viva.” Não surpreende assim que dias depois de terminada a guerra, profundamente perturbado, Salinger tenha se internado num hospital de Nuremberg sofrendo o que à época se chamava de “fadiga de combate”, mas hoje é caracterizado como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Após a derrota da Alemanha e sua alta no hospital, Salinger estranhamente não voltou de imediato para casa, preferindo continuar como agente de contrainteligência durante mais seis meses num programa de “desnazificação”. Casou-se então com a alemã Sylvia Welter em outubro de 1945 e a levou para os Estados Unidos em maio de 1946, mas o casamento fracassou ao fim de oito meses, supostamente porque o autor soube que ela havia sido informante da Gestapo durante a guerra ou que não gostava de judeus. Em

1972, Margaret, a filha de Salinger, estava em sua companhia quando ele recebeu uma carta de Sylvia, que rasgou em pedacinhos ao ver o nome da remetente, sem ler o conteúdo.

Em meados de 1948, o produtor cinematográfico Samuel Goldwyn comprou os direitos do conto Tio Wiggily em Connecticut (incluído na coletânea Nove estórias). O filme foi lançado no ano seguinte, com o título de My foolish heart (Meu maior amor, no Brasil). Embora estrelado por dois grandes astros, Dana Andrews e Susan Hayward, e com uma canção (de mesmo nome) que depois se tornaria um clássico na voz de Billy Eckstine, o filme foi malhado pelos críticos e se afastou muito do que Salinger escrevera. Por isso, ele nunca mais permitiu outras adaptações cinematográficas de suas obras, mesmo quando Brigitte Bardot quis comprar os direitos de Um dia ideal para os peixes– banana (que abre aquela mesma coletânea) e Billy Wilder e Steven Spielberg lhe ofereceram fortunas pelos direitos do romance O apanhador no campo de centeio.

Quando saiu The catcher in the rye, em 1951, Salinger já havia publicado 27 contos em diversas revistas, tais como Collier’s, The Saturday Evening Post, Cosmopolitan, Story, Mademoiselle e The New Yorker. Seis deles foram integrar o volume da coletânea Nine stories, publicada em 1953, mas a partir daí começaram a rarear as aparições de Salinger em pessoa e também em letra de forma: Franny e Raise high the roofbeam, Carpenters só vieram a lume em 1955, Zooey em 1957, Seymour: an introduction em 1959, até o derradeiro Hapworth 16, 1924 em junho de 1965.

Os outros 22 contos Salinger decidiu que não mereciam ser eternizados em livros, gerando com isso uma verdadeira caçada, conduzida por seus admiradores armados de giletes, às revistas em que tinham aparecido originalmente. Anos depois eu soube que existia uma edição pirata desses contos, combatida arduamente na Justiça por Salinger.

No que hoje defino como um exemplo magnífico de serendipidade, em viagem a Paris encontrei numa pequena livraria os dois volumes clandestinos em que esses contos banidos haviam se refugiado. Hoje em dia eles são oferecidos na internet por cerca de mil dólares, conquanto os meus nunca estarão à venda.

Praticante do zen-budismo durante muito tempo, em 1952 Salinger comunicou aos amigos que se convertera ao hinduísmo advaita vedanta após ler os ensinamentos do líder religioso sri Ramakrishna. Também abandonou a kriya yoga e, na busca desesperada por alguma sustentação espiritual, tentou outras crenças religiosas, medicinais e alimentícias, como a ciência cristã, a homeopatia, a acupuntura, a macrobiótica e a corrente mística do islamismo representada pelo sufismo. Margaret A. Salinger, no livro Dream catcher: a memoir, diz que seu pai, além de praticar a glossolalia, chegou até a beber a própria urina.

Em fevereiro de 1955, Salinger casou-se com Claire Douglas, uma aluna da Faculdade Radcliffe e filha do crítico de arte Robert Langton Douglas. Tiveram dois filhos, Margaret e Matthew. O casal recebeu instruções sobre o kriya yoga num pequeno templo hindu da cidade de Washington, e Salinger insistiu com Claire para que abandonasse os estudos universitários quatro meses antes de se formar, a fim de viverem juntos numa isolada propriedade em Cornish, no estado de New Hampshire, onde não se encontrariam com ninguém por longos períodos. As frustações de Claire, decorrentes inclusive das constantes mudanças de crença religiosa por parte do marido, se agravaram por ela achar que a filha tomara seu lugar na afeição do autor. Margaret foi uma criança enfermiça, porém Salinger, durante sua fase como aderente à ciência cristã, se recusava a levá-la ao médico.

Segundo consta das memórias de Margaret, sua mãe lhe contou anos depois que, no inverno de 1957, planejara matá-la e depois se suicidar durante uma viagem com o marido a Nova York. Limitou-se a fugir com a filha do hotel em que a família estava, e só voltou a Cornish alguns meses depois, atendendo aos apelos do marido. Claire acabou isolada dos amigos e parentes, tornando-se, nas palavras da filha, uma “virtual prisioneira”. Em 1967, o casal se divorciou e coube a Claire a custódia dos filhos.

Salinger construiu uma casa para ele dentro da propriedade onde vivia sua família, a fim de se manter perto dela. Foi lá que morou até morrer, em 2010.

Durante esses tempos febris, o escritor lançou Franny & Zooey, em 1961, e Raise high the roof beam, Carpenters e Seymour: an introduction, em 1963. Cada livro continha dois longos contos já publicados na revista The New Yorker entre 1955 e 1959. Na sobrecapa do primeiro, assim se referiu à sua crescente condição de recluso: “Tenho a opinião subversiva de que os sentimentos de um autor com respeito à anonimidade- obscuridade são a segunda propriedade mais valiosa que lhe é conferida por empréstimo durante sua vida de trabalho.” Os personagens de todas essas obras pertenciam à família Glass, que já fizera sua aparição em Um dia ideal para os peixes-banana, Tio Wiggily em Connecticut e Lá embaixo, no bote, três contos da coletânea Nove estórias. Depois disso, só mais um conto viu a luz do dia, Hapworth 16, 1924, que ocupou quase toda a edição de 11 de junho de 1965 da New Yorker. É uma longa carta de Seymour Glass

para os pais, escrita aos 7 anos num campo de férias de verão, e foi muito mal recebida pelos críticos, talvez por isso tenha inaugurado o silêncio editorial do autor, que durou

45 anos até a sua morte, em 2010.

Nos anos seguintes, Salinger teve um relacionamento de sete meses com uma moça de

18 anos, Joyce Maynard, que chamara a atenção com um artigo publicado no New York Times em 1972. Na sua autobiografia, Maynard diz que o escritor terminou repentinamente o relacionamento e a mandou embora. Mais tarde, ela descobriu que Salinger já tivera outros romances com várias jovens e sempre os iniciava enviando uma carta, como acontecera em seu caso. Em 1988, quando já chegara aos 69 anos, Salinger casou-se pela terceira vez, com a enfermeira Colleen O’Neill, quatro décadas mais moça que ele. Numa rara entrevista que deu em 1974 para o New York Times, declarou que

“há uma paz maravilhosa em não publicar… Eu gosto de escrever. Amo escrever. Mas escrevo apenas para mim mesmo e para meu prazer”.

Desde 2011, a viúva Colleen e o filho Matthew trabalham em tudo que Salinger escreveu ao longo de meio século. Todos os rumores sobre os vários romances guardados nos arquivos da casa de Cornish são negados pelos curadores. A inesperada demora dos dois em tornar público o material inédito só faz gerar maior expectativa nos meios literários e, em especial, entre os milhões de admiradores do autor de O apanhador no campo de centeio em todo o mundo.

Aparte conhecida da obra de Salinger tem sido objeto de incontáveis avaliações críticas em nada convergentes, mas que a meu ver poderiam ser resumidas em algo comparável a uma curva de Gauss: prestígio crescente com os primeiros contos aparecidos em diversas revistas, em especial aqueles publicados pela New Yorker; ponto máximo atingido com o romance O apanhador no campo de centeio e a coletânea Nove estórias; segmento descendente a partir da fixação com a família Glass nos longos

contos Franny, Zooey, Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira, e Seymour: uma apresentação; ponto mínimo alcançado com a publicação de Hapworth 16, 1924.

Todavia, as avaliações críticas são unânimes em encontrar inegáveis paralelos entre os escritos de Salinger e seus muitos problemas pessoais. No final de Salinger, biografia da qual fui um dos tradutores (foram cinco, em virtude da urgência no lançamento do livro de mais de quinhentas páginas), os autores David Shields e Shane Salerno afirmam peremptoriamente que a vida de Salinger “foi um suicídio em câmera lenta. Seu

objetivo era desaparecer. Em uma carta, ele escreveu: ‘Sou um problema, não um homem’”.

Shields e Salerno examinam dez problemas fundamentais. O problema anatômico se deveu ao fato de Salinger haver nascido com apenas um testículo, o que psicologicamente teria perturbado sua vida sexual e o levado inclusive a cessar o relacionamento amoroso com diversas moças pouco depois de consumá-lo. Oona O’Neill era “o filme que passava sempre na mente dele”, uma paixão frustrada que o fez engajar-se com tantas outras jovens de 18 anos, dotadas de feições semelhantes às da mulher de Chaplin.

A guerra sem dúvida modificou Salinger de forma profunda, mas, sentindo-se incapaz de escrever diretamente sobre suas experiências nos campos de batalha, ele as transmudou nos traumas que tão duramente afetam Holden Caulfield, o protagonista de O apanhador no campo de centeio, por causa da morte de seu adorado irmão mais

moço. Outra consequência de haver testemunhado terríveis carnificinas e dos cadavers de judeus semicarbonizados num campo de extermínio nazista foi a incessante busca de Salinger por algum amparo espiritual, acolhendo e rejeitando diversas crenças. A partir de Nove estórias, a filosofia vedanta se apodera de seus escritos sobre a família Glass e termina por empanar o talento artístico. Voltando da guerra, ele tentou retomar em Nova York a condição de indivíduo sociável que o caracterizara no passado, porém o chamamento de um refúgio rural, já presente no sonho de Holden de fugir com a namorada Sally Hayes para o campo, o obrigou a enfurnar-se nos confins de New Hampshire, aos 33 anos, escapando para sempre das imposições comportamentais de quem mora numa metrópole.

Os dois primeiros casamentos também representaram um problema para Salinger. O primeiro teve a duração de uma flor, terminando supostamente quando ele soube das ligações da mulher com o nazismo, ocultadas até então. A relação conflituosa com Claire, a segunda mulher, que por pouco não terminou de forma trágica, foi marcada pelo crescente isolamento dos dois e pela circunstância de que ele a procurava sexualmente quase que apenas para fins de procriação. Os dois filhos apresentaram os traços conflitantes da personalidade do pai: o aquiescente Matthew, companhia fiel na hora de assistir às partidas universitárias de futebol americano e basquete, é hoje um dos

testamenteiros do espólio literário do autor; Margaret, impetuosa e iconoclasta, escreveu um contundente livro de memórias que a afastou do pai pelo resto da vida.

Além da fixação em Oona, a atração que Salinger sentia pelas mocinhas tinha a ver com a fantasia de inocência, só encontrada para ele em quem não fora ainda poluído pelo mundo adulto, o que também se manifesta no grande número de seus personagens infantis ou adolescentes, todos guardando ainda a pureza que ele tinha perdido. Embora, para efeitos práticos, Salinger parecesse viver como um ermitão, ele na verdade fazia viagens pelo país e ao exterior, além de se comunicar por cartas e telefonemas com alguns amigos e ex-companheiros de farda. Assim, seu isolamento consistia

basicamente em manter controle sobre o número, a frequência e a intensidade dos contatos que desejava ter com o mundo. Apesar de afirmar em seus contos que a essência da vida religiosa residia no desapego, a irmã e a filha disseram que ele só se interessava de fato por seus próprios problemas e pela necessidade de não ser impedido de escrever.

Na obra de Salinger, merecem atenção especial Holden Caulfield, o protagonista de O apanhador no campo de centeio, e a família Glass, presente em tudo que ele publicou depois do sucesso fenomenal deste seu único romance.

Desde as primeiras páginas tomamos conhecimento de que, aos 17 anos, Holden está se recuperando de um colapso nervoso numa clínica psiquiátrica, depois de saber que seria expulso do colégio no ano anterior e passar dois dias tresloucados vagando por Nova York, onde moram seus pais e a irmã mais moça. Mas o que o teria deixado tão abalado a ponto de exigir a longa internação? Salinger admitiu numa entrevista dada em 1953 para o jornal de uma escola secundária que o romance era “meio” autobiográfico, explicando: “Minha juventude foi bem parecida com a do rapaz no livro, e representou um grande alívio contar às pessoas sobre isso.”

Curiosamente, ele usou o nome Holden Caulfield em diversos contos publicados antes de O apanhador, a começar por Slight rebellion off Madison, embora tais contos não revelem uma linha do tempo consistente e os personagens que carregam tal nome tenham características inteiramente diferentes e até contraditórias. Num deles, por exemplo, Holden Caulfield é um soldado que morre em ação em 1944 – quando o Holden do romance teria 16 anos em 1949. Assim, embora permaneça um mistério porque o autor tinha tamanha fixação por esse nome, é bem possível que ele visse o personagem como seu alter ego.

Como descrevi antes, as brutais experiências de Salinger durante a Segunda Guerra Mundial o levaram a se autointernar num hospital alemão após o fim do conflito. E o homem que voltou dos campos de batalha não era de fato o mesmo. É muito provável, portanto, que a composição de O apanhador no campo de centeio tenha representado uma liberação para Salinger, uma imensa catarse, ao escrever na verdade um livro de guerra transmudando-o na experiência de um conturbado adolescente que tinha muito do autor. Todavia, o que dificilmente se vê numa primeira leitura, quando as aventuras cômico-patéticas do rapaz dominam nossa percepção, é que ele transferiu também para Holden Caulfield seu transtorno psíquico e talvez até mais, em matéria de distúrbio mental.

No caso de Holden, o trauma é causado pela perda de Allie, o irmão mais moço que ele amava tanto e que morre de leucemia. O livro descreve minuciosamente o surto

psicótico que acometeu Holden na noite da morte de Allie. Por isso, as manifestações de rebeldia contra a hipocrisia do mundo adulto ao longo do romance são acompanhadas

de frequentes referências ao irmão e à depressão provocada por sua ausência, não faltando nem mesmo, como sintoma de sua grave perturbação, o desejo de se suicidar. A eventualidade de que Holden sofresse de um distúrbio bipolar é estranhamente sugerida pelo fato de que a leitura de O apanhador despertou trágicas emoções em várias pessoas com comprovadas doenças mentais, como se, de alguma forma, elas tivessem sentido as vibrações negativas que incontáveis leitores sadios não percebem.

Com efeito, vários episódios violentos foram associados ao romance, inclusive o assassinato da atriz Rebecca Schaeffer pelo ex-militar Robert John Bardo (em 1989) e o atentado contra Ronald Reagan por John Hinckley Jr. (em 1981). No exemplar que carregava no bolso no dia em que matou Lennon, em 1980, Mark David Chapman tinha escrito “Essa é minha declaração” e assinava “Holden Caulfield”.

Em 1948 a família Glass fez sua aparição no enigmático conto Um dia ideal para os peixes-banana, que tem como pano de fundo um hotel à beira-mar na Flórida onde um casal se hospeda numa segunda lua de mel. A mulher rica e algo fútil, Muriel Glass, telefona da suíte para a mãe a fim de conversar sobre o marido, Seymour, um veterano da Segunda Guerra Mundial que recentemente recebeu alta do hospital militar em que havia sido internado por apresentar um sério distúrbio psicológico. A mãe mostra-se preocupada com o comportamento cada vez mais errático e antissocial do genro, afirmando que o doutor dissera a seu marido que ele poderia “perder inteiramente o controle” a qualquer momento. Muriel considera tudo aquilo um exagero por achar que as idiossincrasias do marido são benignas.

Enquanto isso, na praia, uma menina chamada Sybil Carpenter foi deixada sozinha pela mãe, que resolveu tomar um Martíni com a amiga no bar do hotel. Sybil sai andando e, ao encontrar Seymour deitado a sós na areia, reclama por ele haver deixado que, na noite anterior, outra menina se sentasse a seu lado quando tocava piano na sala de estar do hotel. Seymour procura apaziguá-la e, sugerindo que “pegassem um peixe-banana”, a põe em cima de uma boia de borracha e entram n’água. Lá, ele conta a história da “vida muito trágica” dos peixes-banana, que se empanturram de bananas e morrem nos

buracos onde encontram o alimento porque, de tão gordos, não conseguem escapar. Sybil não parece impressionada com o relato, mas declara ter visto um daqueles peixes com seis bananas na boca. Surpreendendo-a, Seymour beija o arco de um dos pés dela e a conduz de volta à praia, onde a menina corre “sem remorso na direção do hotel”.

Ao voltar, Seymour se irrita com uma hóspede no elevador, acusando-a, sem nenhuma base, de olhar escondido para seus pés. Entra no quarto que cheira a mala de couro nova e a removedor de esmalte de unhas, olha de relance na direção da moça que dorme

numa das camas gêmeas, pega a pistola dentro de uma das malas, solta e volta a encaixar o pente de balas, senta-se na cama desocupada e dá um tiro na têmpora direita.

É impressionante o quanto há de autobiografia e simbolismo em um conto tão curto. Lá está o veterano de guerra com graves problemas psiquiátricos, lá está a esposa jovem e insatisfatória, pois é claramente incapaz de compreender a profundidade do sofrimento do marido. Lá está a crítica social à ganância, representada pelos peixes que morrem por se empanzinar de bananas, lá está a irritação com o mundo adulto na imagem da

hóspede que entra no elevador com o nariz coberto de pomada. E, em especial, lá está a irrecuperável perda da inocência, quando Sybil corre de volta para o hotel sem remorso.

O próprio nome da menina é evidente referência às sibilas romanas, bruxas capazes de predizer o futuro. Essa impressão de algo fatídico iminente talvez seja insinuada pela pergunta que Sybil faz várias vezes à mãe no começo do conto sobre se ela “viu mais vidro” (see more glass), cuja pronúncia é igual à do nome do protagonista principal (Seymour Glass). Abalado pelo morticínio que testemunhou nos campos de batalha e de extermínio, sentindo ser incapaz de se readaptar às exigências do cotidiano, Seymour – ao contrário do autor – opta pelo refúgio definitivo do suicídio.

Mas a coisa é ainda mais complicada. Como revelam as diversas narrativas subsequentes com o mesmo personagem, Seymour é o mais velho de uma família de sete filhos, idolatrado pelos irmãos e irmãs como um gênio e um santo. Aos 6 anos, já

havia lido tudo sobre Deus na biblioteca local e, aos 7, os exercícios de meditação hindu permitiam que entrevisse suas encarnações passadas e futuras. Entre 10 e 15 anos, é a atração principal do programa de rádio Crianças sabidas (em que os outros irmãos também brilharam e cujas remunerações serviram para financiar os estudos

universitários de todos). Depois de obter o doutorado da Universidade Columbia, aos 18 anos, passa a dar aulas, tornando-se (mais uma vez como o autor) fluente em alemão e francês, além de (ao contrário do autor) ler chinês e japonês. O inexplicável suicídio – um santo pode se matar? – ocorre apenas duas semanas depois do retorno de Seymour aos Estados Unidos, e os irmãos tentam seguir seus ensinamentos que (mais uma vez como o autor) combinavam preceitos do Antigo e Novo Testamentos, do taoísmo e do advaita vedanta. No entanto, como a morte de Seymour impregna a vida dos sobreviventes, Zooey certa feita diz à mãe que “a porra desta casa toda fede a fantasmas”.

A família Glass, que segundo um crítico “colonizou” a imaginação e os escritos de Salinger durante os últimos anos de sua vida literária conhecida, é uma criação extremamente complexa, na realidade um mosaico, onde estão expostas, além das circunstâncias da vida do autor, todas as suas ideias, manias e traumas.

O pai Les (judeu) e a mãe Bessie (irlandesa) haviam constituído no passado uma dupla bastante conhecida de artistas de vaudevile, tendo ensinado canto e dança aos sete

filhos: Seymour, Buddy, Boo Boo, Waker, Walt, Zooey e Franny. O patriarca quase não é visto e tem uma aparição pouco simpática, quando visita o apartamento dos dois filhos mais velhos – o que possivelmente espelha a relação difícil entre o autor e seu pai, Solomon. Bessie, que circula pelo enorme apartamento, onde vive a numerosa família, com um avental em cujos avantajados bolsos tilintam desde ferramentas a pregos e parafusos, é a mãezona amada por todos – o que também deve refletir a relação de Salinger com Marie-Miriam.

Webb Gallagher (Buddy) Glass, um escritor nascido no mesmo ano que Salinger, é apresentado como seu alter ego, ao reivindicar a autoria de vários contos (inclusive Um dia ideal para os peixes-banana) e até do romance O apanhador no campo de centeio. Dá aulas de escrita num colégio para mulheres, mas tem como objetivo na vida ser o discípulo e biógrafo de Seymour.

Beatrice (Boo Boo) Tannenbaum, casada com um judeu e mãe de três filhos, é uma mulher centrada, ex-secretária de um almirante durante a guerra. No conto Lá embaixo, no bote consola o filho de 4 anos que ouviu a empregada dizer à diarista que seu pai era um “gringo nojento” e, embora o menino não conheça o significado pejorativo de “gringo” (confundindo-o com “bingo”), sente a carga de preconceito que a palavra carrega.

Os gêmeos Walter F. Glass e Waker Glass são os membros menos visíveis da família. O primeiro, um militar, morre no Japão devido à explosão acidental de um forninho, ironicamente já depois de encerrada a guerra. O segundo fica detido num campo com outros jovens que se recusaram a servir por razões de consciência e, terminado o conflito, se torna um monge cartuxo.

Zachary (Zooey) Glass nasceu nove anos depois dos gêmeos e cinco antes de Franny. Depois de Seymour, é o favorito dos ouvintes do programa Crianças sabidas. É ainda quem melhor compreendia o irmão que se suicidou e se vale dos seus ensinamentos para tirar a irmã mais moça de grave crise espiritual. Adulto, torna-se ator em filmes para a televisão (cabendo lembrar que Matt, o filho de Salinger, fez o papel de Capitão América no filme de 1990, baseado no super-herói das histórias em quadrinhos). Frances (Franny) Glass, dezoito anos mais nova que Seymour, é uma universitária

obcecada com O caminho de um peregrino, obra espiritualista russa do século XIX, e só consegue superar seu colapso nervoso mediante longas conversas com Zooey.

Graças ao romance O apanhador no campo de centeio, aos contos reunidos em Nove estórias, em Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira e em Franny, J. D. Salinger garantiu um lugar de destaque no panteão dos grandes escritores americanos do século XX – ainda que Seymour: uma introdução, Zooey e Hapworth 16, 1924 tenham recebido uma recepção mais fria, devido tanto à insatisfação com o excesso de preciosismo intelectual e precocidade dos protagonistas quanto à crescente dose de religiosidade que passou a permear tais textos.

Comentando o livro Franny & Zooey, outro famoso escritor, John Updike, fez uma bela e sensata apreciação: “A saga da família Glass, tal como por ele esboçada, contém potencialmente uma grande ficção. Depois de feitas, num tom corretamente respeitoso e apreensivo, todas as ressalvas sobre a direção que ele tomou, cumpre reconhecer que se trata de uma direção e que a recusa de permanecer satisfeito, a disposição de arriscar o excesso por causa de suas obsessões é o que distingue os artistas daqueles que apenas buscam nos divertir, e é o que faz com que alguns artistas sejam aventureiros em benefício de todos nós.”

Mas a última palavra deve ficar com o próprio Salinger: “Há um perigo muito real, eu suponho, de que cedo ou tarde vou me atolar, talvez desaparecer por completo, em meus próprios métodos, locuções e maneirismos. No entanto, de modo geral, tenho bastante esperança.”

A esperança de todos os amantes da literatura, e em particular dos admiradores de Salinger, entre os quais me perfilo, é que a grande ficção desejada por Updike esteja presente no vasto material que Matt Salinger e Colleen O’Neill estão garimpando há mais de dez anos.