CARTA AOS JOVENS COLEGAS

(Boletim ADB Ano I, Nr. 2 – Brasília, junho de 1993)

Jorio Dauster

Muitos de vocês, ao saberem que o Embaixador Jayme Azevedo Rodrigues foi agraciado com a Grã-cruz da Ordem de Rio Branco, terão perguntado quem era o homenageado e o porquê da concessão póstuma – a primeira na longa história da mais alta comenda de nossa Casa. Como vão bem longe os eventos que conduziram à cassação dos direitos políticos de Jayme e seu afastamento da Carreira, quero somar-me aos que certamente já lhes deram boas explicações sobre o ato de justiça praticado pela Comissão Diretora da Ordem e por seu Presidente, o Ministro Fernando Henrique Cardoso.

Outros que acompanharam por mais tempo a trajetória pessoal e profissional de Jayme Azevedo Rodrigues, como Antônio Houaiss, atingido pelo mesmo ato institucional em 1964 poderão melhor descrever a inteligência incisiva e o sentimento nacionalista de um homem cuja devoção aos ideais democráticos se fortalecera nos bancos da Universidade de Harvard, Como amigo de Jayme, mas sobretudo como seu assessor quando ele era o Secretário Geral Adjunto para Assuntos Econômicos, prefiro contar-lhes algo do que foi sua última missão como diplomata.

Ao longo da década de 50 começara a cristalizar-se nas Nações Unidas a noção de que existia uma diferença qualitativa entre as nações industrializadas e os demais países do mundo, muitos deles há pouco libertados do jugo colonial. Surgia assim o conceito dinâmico de desenvolvimento, englobando categorias econômicas, sociais e culturais peculiares – algo muito distinto da percepção anterior de que as disparidades entre os povos explicavam-se por um mero “atraso relativo” numa trajetória histórica que todos seguiriam de modo mais ou menos uniforme. Para bem avaliar a novidade e o alcance dessas ideias, basta ter em conta que o arcabouço institucional pouco antes eregido pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, em Havana e Bretton Woods, simplesmente ignorava a condição de “subdesenvolvimento”. Excetuados alguns preceitos modestos sobre acordos de produtos de base, ignorava também a estreita correlação entre o “atraso” econômico e a estrutura assimétrica das trocas internacionais.

Paralelamente a esse processo de conscientização coletiva (auxiliado pelas reflexões doutrinárias de homens como Raul Prebisch na CEPAL), configurava-se, naquilo que só mais tarde receberia o nome de Terceiro Mundo, um movimento essencialmente político de tendência neutralista. Mas a postura não-alinhada nascida em Bandung, envolvendo países asiáticos e

 africanos que recentemente haviam conquistado sua independência, pouco tinha a ver com as necessidades e preocupações da América Latina, de cunho precipuamente econômico.

Entretanto, todas essas inquietações dos “pobres” tinham como pano de fundo a exacerbação da Guerra Fria, a ela se vinculando na medida em que cada um dos polos buscava alargar sua área de influência apresentando-se perante os países periféricos como o modelo ideal para alcançarem melhores níveis de vida. O eco mais conspícuo desse confronto em nosso entorno geográfico foi o estabelecimento de um regime comunista em Cuba, e não custa lembrar que em 1962, quando muitos de vocês nem eram nascidos, a Humanidade esteve tão perto quanto nunca do holocausto nuclear na esteira da Crise dos Mísseis. Num Brasi! que fora sacudido pelo sopro modernizante do Governo Kubitschek, multiplicavam-se as tensões políticas e econômicas com a renúncia de Quadros, gerando a crise que foi desaguar pouco depois na ruptura do sistema democrático. É nesse contexto turbulento que ganha corpo, nas Nações Unidas, a iniciativa de se realizar uma Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, capaz de lidar pela primeira vez com os problemas dos produtos de base, dos manufaturados e dos serviços (então chamados de “invisíveis”) dentro de uma concepção global em que se buscasse solução conjunta e sistêmica para os crescentes desníveis entre o Centro e a Periferia. No entanto, ao postular uma divisão entre o Norte e o Sul, a UNCTAD (como ficou conhecida) estava indiretamente questionando o “status quo de que se beneficiavam as nações industrializadas, sendo por elas vista, ademais, como séria ameaça ao sistema de alianças automáticas em que se alavancava a clivagem entre o Leste e Oeste.

Não é assim de estranhar que a Conferência – espuriamente identificada como uma ação de caráter “subversivo” – houvesse despertado forte resistência da parte dos países industrializados, e que também no Brasil a ela se opusessem os setores mais permeáveis à visão maniqueísta então prevalecente. Mas foi em prol de sua realização, convencidos de que os interesses do País seriam melhor servidos pela afirmação internacional da temática do desenvolvimento, que se empenharam Jayme Azevedo Rodrigues e outros diplomatas brasileiros, dentre os quais não poderia deixar de mencionar, por sua decisiva atuação em Nova York, a figura de Miguel Ozório de Almeida.

A caminho de Genebra, onde a primeira UNCTAD teve lugar em março de 1964, foi necessário empreender um longo e árduo trabalho preparatório em que o Brasil, graças à tenacidade de Jayme Azevedo Rodrigues, desempenhou papel de incontrastada liderança. Forjaram-se então alguns instrumentos que hoje pertencem ao cotidiano de nossas atividades, como os Grupos Regionais e o Grupo dos 77 (a cifra atualmente ultrapassada de muito, permanecendo como recordação do contingente de países em desenvolvimento à época). Criou-se também a CECLA – precursor do SELA e notável por constituir o primeiro foro de concertação exclusivamente latino-americano, antecedendo por algumas décadas o Grupo do Rio, seu condigno sucessor na esfera política. Não há qualquer traço de saudosismo político nesta recapitulação histórica. Felizmente o mundo mudou, mudou o Brasil. Se persistem as disparidades internacionais de renda, ganhou-se um quadro conceitual de onde ainda agora se extraem diretrizes de ação rumo a objetivos antes nebulosos. Se subsiste no Brasil um doloroso abismo entre os que têm e os que não têm, já não somos aquela economia agrário-mercantil dependente das receitas de um punhado de matérias primas – e isso porque, malgrado todas as distorções, soubemos desde então que nosso destino como nação autônoma deveria passar pelo fortalecimento da infraestrutura e pela criação de uma sólida base industrial.

São outros os desafios com que ora nos confrontamos, outras devem ser as ferramentas a utilizar. Mas ficam dois singelos ensinamentos que me permito passar a vocês, jovens colegas.

O primeiro é o de que, respeitando o patrimônio institucional do Itamaraty, o diplomata não pode refugiar-se na condição de mero burocrata. Pelo contrário, não lhe incumbe o dever de pensar sobre o Brasil e sobre o mundo, mas dele se exige, acima de tudo, a audácia de pensar o Brasil no mundo. Jayme Azevedo Rodrigues assim o fez – e só por isso ele já seria merecedor da Grã-cruz da Ordem de Rio Branco.

O segundo é o de que, como cidadão, cumpre a cada diplomata defender sem esmorecimento a democracia, para que suas ideias e todas as ideias mereçam igual respeito, para que as diferenças de opinião se resolvam pela força apenas dos argumentos e nunca pela via da repressão. As convicções de Jayme Azevedo Rodrigues foram silenciadas por um ato de exceção – e só para que isso nunca se repita ele já seria merecedor da Grã-cruz da Ordem de Rio Branco.