Sonetos Chulos

Sob o manto protetor de Erato, as coisas do amor foram cantadas em todos os tempos e em todas as línguas naquilo que chamamos de poesia romântica e. quando mais apimentada, de poesia erótica. Mas grandes escritores, também em todos os idiomas, se dedicaram a um gênero que sem dúvida tem muito a ver com o sexo, mas em que a linguagem e as imagens são escrachadas: a poesia dita chula. Como meu propósito aqui é apenas mostrar que em certa época andei cortejando de brincadeira essa área sombria da escrita – eu que nunca ao menos ensaiei compor um poema sério –, acho suficiente apresentar dois exemplos clássicos. O primeiro é  da lavra de Manuel Maria Barbosa l’Hedois du BOCAGE (1765 – 1805), considerado o maior representante do arcadismo lusitano, mas que nos deixou extensíssima obra com palavras rudes – e um primor de soneto que desejava ter como epitáfio:

Lá quando em mim perder a humanidade / Mais um daqueles, que não fazem falta, / Verbi-gratia – o teólogo, o peralta, / Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade: / Não quero funeral comunidade, / Que engrole subvenites em voz alta; / Pingados gatarrões, gente de malta, / Eu também vos dispenso a caridade: / Mas quando ferrugenta enxada idosa / Sepulcro me cavar em ermo outeiro, / Lavre-me este epitáfio mão piedosa: / “Aqui dorme Bocage, o putanheiro: / Passou a vida folgada, e milagrosa: / Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”

O segundo exemplo vem de ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, uma estrofe de “O que se passa na cama”, em O amor natural (Rio de Janeiro: Record, 1992):

Ai, cama, canção de cuna, / dorme, menina, nanana, / dorme a onça suçuarana, / dorme a cândida vagina, /dorme a última sirena / ou a penúltima… O pênis / dorme, puma, americana / fera exausta. Dorme, fulva / grinalda de tua vulva. / E silenciam os que amam, / entre lençol e cortina / ainda úmidos de sêmen, / estes segredos de cama.

Em meados da década de 1970, enquanto servia no Itamaraty em Brasília, fiquei conhecendo melhor meu colega Sérgio Duarte, emérito sonetista, tradutor dos grandes mestres do gênero (inclusive o Cancioneiro de Petrarca) e, não obstante, especialista nas questões nucleares que anos mais tarde lhe valeram a importante função de Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. E foi então que me chegou às mãos a curiosa troca de sonetos chulos entre Sérgio Duarte (usando o pseudônimo Guiar Tedes) e seu irmão, o que me inspirou a tentar também participar da brincadeira – embora eu não garanta que minha métrica seja tão precisa quanto a de meu correspondente.

Seja como for, desse intercâmbio prazeroso mas passageiro resultou uma parceria extraordinária: tempos depois, quando resolvi traduzir Pale Fire (Fogo pálido) de Vladimir Nabokov, me defrontei logo de início com um poema de 999 versos em decassílabos heroicos rimados dois a dois. Além do mais, esse poema, escrito em linguagem coloquial, é dividido em quatro cantos simétricos, e dezenas de palavras nele contidas servem como gancho para os comentários no tresloucado texto em prosa que se segue. Ufa! Assim, sendo claramente impossível manter a mesma estrutura e as rimas, decidi de todo modo manter a disciplina dos versos em decassílabos, coisa que não fizeram meus colegas que verteram o livro em versos brancos nos poucos idiomas que consultei. Servindo então em Londres, nas horas vagas tive a ousadia de fazer uma primeira versão do poema e a mandei para o Sérgio em Genebra, naquela época em que não havia e-mails ou zaps, pedindo sua opinião. Duas semanas depois me chegou uma carta em que era meticulosamente comentada apenas a primeira estrofe, isto é, 12 dos 999 versos! Envergonhado, lutei por algumas semanas até que ele concordou em ser o cotradutor de todo o livro, sendo nossa interpretação do poema aprovada por ninguém menos que Paulo Rónai e Antônio Houaiss.

DE J.D. PARA GUIAR TEDES

Busquei fruir os sons de lira altiva / Que às carícias de Tedes ecoara. / Tal era a fama, sim tão bela e rara, / Da ardente musa de seus dons cativa. // Agora sei porém, por mais que viva, / Por mais que amargue deste mundo a tara, / Jamais terei de haver-me, cara a cara, / Com tão infame e pífia inventiva. // Eu que pensara ouvir sublime hino, / Que do ordinário me elevasse a vista, / De cu em cu vaguei, cruel destino. // Mas a verdade, hélas, por fim conquista; / Se toda a merda nasce no intestino, / Vive e morre na mente desse artista!

DE GUIAR TEDES PARA J.D.

“Sátiras prestam, sátiras se estimam / Quando nelas Calúnia o fel não verte” (Bocage)

Não me ofendo, senhor, nem faço caso / De anônimas perfídias e ironias / Quais as vossas perversas porcarias / Que em responder agora me comprazo. // As vossas falsidades deram azo / A que eu compare aqui nossas porfias: / Eu falo em gretas doces e macias / E vós falais de cus no mesmo prazo. // Em vossos versos demonstrai às claras / Que amais da merda as fedorentas grutas / Que de guarida servem às rijas varas; // Mas eu canto, nos meus, conas hirsutas, / Chochotinhas febris, bucetas raras, / De princesas, de fadas e de putas.

DE J.D. PARA GUIAR TEDES

Justa afronta movera minha pena / Que de estultícias nunca compartilha. / Nem pensara que Musa assim serena / Enxovalhada fosse em vil quizília. // Mas se a infâmia é farpa que envenena,/ Cumpre exprobrar aquele que a perfilha, / Pois quem de anais pendores me condena / Em merda traça a tenebrosa trilha. // A vós – que tanto amais a rima imunda, / O verso chulo e a tara pestilenta – / Oferto aqui repulsa mais profunda // E enfim registro tudo que me alenta: / De fêmea ardente a curvilínea bunda, / O farto seio, a vulva suculenta.

DE GUIAR TEDES PARA J.D.

Teus sonetos revelam, com malícia, / Inquietações de adolescente afeito / Ao priapismo e às poluções no leito / Disfarçadas com certa pudicícia. // Se bundas feminis te causam o efeito/ De ejacular sonetos com blandícia / (os piores de que se tem notícia) / Meu caro amigo, já não tens mais jeito! // Por Vênus calipígia, que te inspira / Esse teu estro desbocado e cru, / É que atraíste do Parnaso a ira; // E agora eis o que deves fazer tu: / Dobra, bem dobradinha, a tua lira / E, em seguida, enfia-a no cu.

DE J.D. PARA GUIAR TEDES

A paciência minha nem é pouca, / Mas não bastante p’ra calar-me a boca / Quando um parceiro, falto de argumento, / Recorre assim ao mero xingamento. // Se minha musa, dizes, anda rouca / E no Parnaso é tida como louca, / A tua atende em lupanar nojento / E só se inspira em sonhos de excremento. // Teu verso indica, é Freud quem alerta, / Anais impulsos a que tu não cedes / E em vão sublimas dessa forma incerta. // Mas, para um leigo, em tua mente fedes / Qual vazadouro, qual cloaca aberta, /  Ó conturbado, ó pobre Guiar Tedes.

DE GUIAR TEDES PARA J.D.

Que a Musa estenda o manto benfazejo / Por sobre a liça, trágica e sangrenta, / Onde Guiar a um poetastro enfrenta / Colhendo glória e louros de sobejo. // Da minha lira suja não me pejo / Mas o charco em que vives não me tenta; / Antes, prefiro a reconquista lenta / Da perfeição formal que tanto almejo. // Eia, sus, aprendiz tardo e bisonho / Que em vão procuras ouro entre o cascalho; / Recolhe o desafio que te imponho // E as penas sofrerás de novo Ordálio / Para glosar o mote que proponho: / “Cus em repouso, e picas ao trabalho”.

DE J.D. PARA GUIAR TEDES

Da ironia a espada mais cortante / Não penetrara a dura carapaça / De quem se crê poeta, mas não passa / De trêfego jogral, cruel farsante.  // Vós confundis talento com talante / E gentil graça com vulgar chalaça, / Só não encontrareis a menor jaça / Neste meu estro claro e rutilante. // Aos cus se dê repouso merecido / Das tenebrosas incursões verbais / Que vossos verbos cantam com alarido. // Quanto ao labor das picas, nada mais / Direi para que seja bem ouvido: / Trato da minha – d’outras, vós cuidais!

DE GUIAR TEDES PARA J.D.

Por ter estado do Parnaso ausente/ Durante muito tempo, faço agora / Nova glosa, com lira mais sonora / E coração mais presto e diligente. // Percebo, por teus versos, que somente / De ti próprio te ocupas cada hora, / Sem permitires a ninguém de fora / Cuidados ao teu órgão mais potente. // Mais se conhecem os homens, mais espanto / Nos provocam as surpresas do amanhã: / Sei que às vezes sucumbe o monge santo // Na cela escura, ao solitário afã, / Mas não te houvera acreditado tanto, / Tão devotado seguidor de Onan.

DE J.D. PARA GUIAR TEDES

No Pentateuco lê-se que Onã / Não praticava o solitário esporte / Por perversão ou distração malsã, Mas por motivo de ordem bem mais forte: // Pois se Tamar lhe vinha pela morte / De seu irmão que não honrara o clã, / Justificado estava, ingrata sorte, / Em derramar ao solo a seiva vã. // O bíblico episódio aqui relembro / Pois, na vida, ninguém escapa à bronha / Do ardente maio às cinzas de dezembro, // E nada alcança aquele que não sonha. / Mas teu franco fascínio por meu membro, / Hás de convir, é coisa que envergonha.

SONETO AO CARALHO DE J.D.

É um exemplo perfeito de ato falho / E do exibicionismo de um Narciso / Tua crença infantil de que é preciso / Que todos cantem loa ao teu caralho. // És como o eunuco à porta do serralho / Da concubina a ouvir lascivo riso / Que a mão leva à virilha e de improviso, / Lamenta a falta ali do rijo galho. // Não por primeira vez lhe dou conselhos / Por que o dom da humildade em ti não morra: / Vai ao teu quarto, cerca-te de espelhos, // Bate uma bronha, e antes que a seiva escorra, / Vê se o que tens no meio dos pentelhos / Merece o nome arcádico de porra.

DE J.D. PARA GUIAR TEDES

Muitos são os caminhos desta vida / – Vergéis floridos, lúgubres desertos – / E quem garante a hora da partida / Vê que o rumo e a chegada são incertos. // Assim lancei-me, d’alma e peito abertos, / Nesta liça a que o estro nos convida, / Muito embora alertassem os mais espertos / Que me aguardava guerra sem guarida. // Jamais crera, porém, que em branco e preto / Confrontaria tara tão medonha, / Que de meu pau faz tema de soneto. // Cumpre, pois, que a verdade aqui se exponha: / Meu sêmen será sempre, te prometo, / Mais potente que tua vil peçonha!

DE J.D. PARA GUIAR TEDES

Longínqua soa, já, a voz do bardo / Que outrora ousou brandir lira obtusa / Ante a ponta aguçada de meu dardo / Para sofrer derrota sem escusa. // Sedento estou, qual fero leopardo, / Do sangue farto desta vossa musa. / E, como não vos tenho por bastardo, / Jamais contemplarei tíbia recusa. // Busco, porém, porfia nobre e sã, / A que não falte empenho varonil / E a necessária nota folgazã. // Se retrucardes, pois, de forma vil, / No vão apelo à linguagem chã, / Mando-vos logo à puta que o pariu.