Dauster: tradutor do impossível

Tal qual o russo Vladimir Nabokov (1899-1977), o carioca Jorio Dauster, 68 anos, morou em vários países, gosta de jogar xadrez e tênis e pratica a tradução para melhor entender os livros que ama. A obsessão maior de Nabokov eram as borboletas, que ele caçou, dissecou e catalogou infatigavelmente a vida inteira.

Já a obsessão de Dauster são as missões impossíveis. Tanto que desmontou o sistema de cotas do Instituto Brasileiro do Café e foi negociador da dívida brasileira quando Zelia Cardoso de Mello comandava – e botava em polvorosa – a economia nacional. Há vinte anos, Dauster se dedica a uma impossibilidade mais proveitosa, mas tão difícil quanto tratar da dívida externa: traduzir a ficção de Nabokov. Sorte nossa. Sem ele, não haveria nove livros em português do autor de Lolita.

O último feito desse tradutor obstinado foi ter vertido para o português Ada ou ardor, o último grande romance de Nabokov, que a Companhia das Letras vem de lançar.

É sobre Ada e Nabokov que Dauster fala na seguinte entrevista:

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Por que traduzir Ada, um livro de quase 500 páginas, repleto de alusões às letras russas, que se passa num planeta imaginário e não tem nenhum contato com o Brasil de hoje, de ontem e de amanhã? 

Primeiro porque, se me sobrarem tempo e neurônios, pretendo traduzir toda a obra de ficção do Nabokov. Segundo, porque Ada me irritou na primeira leitura devido a seus excessos de preciosismo, mas, em repassagem mais recente, fui descobrindo os temas maravilhosos de uma polifonia que o trabalho de tradução não chegou a esgotar. Quanto ao Brasil, que bom que Ada passe ao largo dele, pois nem nós próprios somos capazes de produzir algo coerente sobre a realidade que vivemos.

Imagina que a literatura brasileira poderá ser influenciada pelas suas traduções de Nabokov?

Se esgotada uma respeitável edição de cinco mil exemplares, aproximadamente 0,000027% da população brasileira (cuidado com os zeros!) poderão compartilhar do prazer que senti. Já a percentagem dos escritores brasileiros que poderão se deixar influenciar pela leitura de Nabokov, aí entramos no escorregadio terreno do delírio: só usando cifras astronômicas saberei medir o tamanho de minha fé na influência das obras que trago para o vernáculo.

Nabokov pertenceria mais à família espiritual de Machado de Assis (a prosa envevenada, o narrador aloprado) ou a de Guimarães Rosa (a criação de um mundo literário colado à linguagem) — ou agora sou eu que deliro? 

Sairei dessa sinuca de bico dizendo que apenas pratico o ofício de tradutor, não tenho a menor capacitação para fazer crítica literária. Modestamente, arrisco a impressão de que os escritos de Nabokov, pelo estilo e temática, não têm nada a ver com o que se escreveu até hoje no português daqui ou d’além-mar.

No posfácio de Ada, Brian Boyd equipara o romance ao Ulisses, de James Joyce. A avaliação não é um poucochinho exagerada? 

Não posso responder por um motivo que certamente me condenará ao inferno onde ardem os párias intelectuais: jamais consegui passar do primeiro capítulo de Ulisses!

A bancada vienense tem mais razões para se irritar com a pedofilia de Lolita ou com o incesto de Ada? 

Homem para lá de opiniático, ressabiado com as “interpretações psicológicas” que faziam dele próprio, Nabokov sempre gozou os freudianos. Mas a escolha de seus temas, em especial aqueles tão polêmicos como a pedofilia e o incesto, respondia a objetivos mais profundos, ao desafio de tratar de situações-limite do ser humano e ainda aí encontrar os caminhos de sua redenção, particularmente através do amor. Ele era um grande moralista, mas sem se tornar um chato ou apelar para a pregação didática. Exemplo disso é a importância corretamente atribuída por Brian Boyd ao papel da personagem Lucette em Ada. Leia com as antenas ligadas para crer…

Não é injusto que Nabokov seja conhecido sobretudo por Lolita? 

Acho que ele próprio não se sentiu injustiçado, pois Lolita permitiu que ele escapasse de uma vida apertada de professorzinho universitário no segundo exílio, nos Estados Unidos, e pudesse se instalar comodamente na Suíça. A ousadia de escrever sobre pedofilia na sociedade puritana da era Eisenhower poderia ser vista até como uma jogada oportunista, mas o tema já o perseguia há muitos anos: ainda na Europa ele escreveu um romance, muito mais cruel e menos bem-sucedido literariamente, em que, como em Lolita, um homem adulto casa-se com uma mulher apenas para ter acesso à filha recém-entrada na puberdade. Mas, cuidado, embora mulherengo o verdadeiro Nabokov jamais foi chegado às ninfetas!

Qual o seu livro preferido dele? 

Na vasta cordilheira Nabokov, há quatro grandes picos: Lolita, Fogo pálido, Ada e O dom. Um pouco abaixo se elevam vários outros romances — inclusive o especialíssimo Pnin, pelo qual tenho grande simpatia — e dezenas de belos contos. Não tenho assim um livro preferido. Em cada momento (entenda-se: releitura) a luz da maestria do autor estará revelando a vertente antes ensombrecida de uma dessas montanhas literárias, e por aí segue o feliz leitor-alpinista, de surpresa em surpresa, de arrebatamento em arrebatamento.

Nabokov não gostava de ser comparado a Joseph Conrad, outro escritor estrangeiro (polonês) que adotou o inglês como língua literária. Dizia que os livros de Conrad eram semelhantes a essas garrafinhas com veleiros dentro: tão-somente engenhosos. Não lhe assalta uma percepção semelhante, a de que o engenho de Nabokov é maior que a sua arte? 

Realmente não. Suas obras combinam a força das idéias com uma capacidade absolutamente excepcional de observar o mundo, tudo isso servido pela precisão e riqueza de um ourives da linguagem. Durante os vinte anos de exílio na Alemanha, Nabokov foi reconhecido como um grande escritor russo. Fugindo de Hitler para a França, escreveu um conto em francês que é admirado por sua qualidade. Enfim chegado aos Estados Unidos, com cinqüenta anos de idade, reinventa-se como escritor em inglês — e que escritor! Não há notícia de feito igual em tempo algum. Nabokov era simplesmente um gênio literário.

Quanto tempo levou para traduzir Ada? 

Levei mais de um ano convivendo com Ada, recebendo no fundo da noite, de algum canto do cérebro, a tradução de uma palavra que ficara mal posta na primeira passagem pelo texto. Como tenho muitos afazeres, o trabalho de tradução não pode observar prazos nem tem hora para ser feito, mas só faz bem, só estimula a produção de endorfinas, quando a gente o faz por amor, sem pressa, revendo e re-revendo.

Ada se encerra com copiosas notas que explicam (ou arreliam) expressões usadas no romance. Na edição brasileira, o tradutor agrega comentários próprios às notas: o tradutor tentou mimetizar o traduzido? 

Para um tradutor – ou pelo menos para este tradutor – uma nota de pé de página é o pior que pode acontecer, pois comprova que ele foi incapaz de encontrar uma solução vernacular satisfatória. Por isso, me orgulho de não haver apelado para uma única nota ao longo de todo o texto, mas pude adotar um critério menos rígido naquela seção em que o próprio autor explica algumas de suas alusões literárias e jogos de palavras. Começando pelo nome da “comentarista”, já quem nem todo leitor é um logomaníaco capaz de ver que Vivian Darkbloom constitui um anagrama de Vladimir Nabokov. Outro exemplo: a nossa Vivian explica um (pavoroso) trocadilho dizendo que “seins durs” é uma pronúncia errada de “sans dire”. Imaginando que até um monoglota nacional saiba o que significa esta última expressão, senti-me porém obrigado a esclarecer que “seins durs” é “seios duros”.

Nabokov implicava com tradutores, tinha uma concepção literalista do metiê e brigou com seu amigo Edmund Wilson a propósito da versão para o inglês do “Oneguin”, de Pushkin. Como imagina que o mestre avaliaria suas traduções? 

Como tradutor, Nabokov ao longo da vida evoluiu para uma posição de literalidade radical, mas o fez movido em grande parte pelas barbaridades que via nas versões de poesias nas três línguas que dominava. Acho uma bobagem a obediência irrestrita e mecânica ao texto original, mas isso não significa que se possa tomar liberdades gratuitas com a obra a ser traduzida. A norma tem de ser respeito com inteligência, sem perder de vista que a tradução não é apenas uma ponte entre idiomas, mas entre culturas. Daí que eu não daria a menor bola se Nabokov não gostasse de minhas traduções.

É mais complicado negociar acordos internacionais de café, trabalhar com Zelia ou traduzir Nabokov? 

Se estiverem presentes a alegria de viver, a confiança no seu taco e uma boa dose de espírito lúdico, coisas que por sorte nunca me faltaram, não há nada complicado demais na face do planeta.