Salinger – Apanhador – entrevista Marco Antônio

Com Marco Antonio de Carvalho (biógrafo de Rubem Braga)

1- Como foi seu contato inicial com RB? Você já o conhecia? Quem o levou até a Editora do Autor? (A Editora era muito nova, recente: você acreditava que ela teria cacife para editar o livro?)

Concluída a versão brasileira “na raça” (sem encomenda de ninguém, sem sabermos se o direito de tradução já estava comprado), pensamos em buscar uma editora e alguém, talvez um colega do Itamaraty, aconselhou a mim e ao Álvaro Alencar (o Antonio Rocha a essa altura já estava curtindo o luar sobre as plantações de chá no antigo Ceilão) a buscar a Editora do Autor por conta da qualidade de seus donos, pois em nosso diletantismo nem nos preocupávamos com a parte comercial da questão . Não me lembro como foi feito o contato com o Braga, mas eu e AA estivemos na cobertura da Barão da Torre em ocasiões diferentes. À margem de um uísque, num papo ameno de começo de noite quando Ipanema era o melhor pedaço do universo, lembro-me apenas de RB dizer que não conhecia muito da literatura americana e certamente nada sobre o Salinger, mas que seu sócio, o Fernando Sabino, seria capaz de opinar sobre o livro que oferecíamos. O AA tem algo de concreto a marcar sua visita: ganhou dele um disquinho de 45 rotações com poesias do cubano Nicolás Guillén lidas pelo autor, o qual guarda até hoje. Depois disso, confirmado o interesse da Editora na publicação, seguiram-se longas tratativas para a compra dos direitos de tradução e definição do título (o que comentarei a seguir).

2- The catcher in the rye já tinha “estourado” nos Estados Unidos, quando você propôs a edição ao Rubem? O que fez com que você acreditasse que o livro poderia ser bem editado e lido no Brasil? Quem propôs a edição do livro(você e/ou os dois outros tradutores)? O título: até hoje se discute qual seria uma tradução-adaptação ideal (em Portugal é Agulha no palheiro): quem propôs o título de Apanhador…?

O Catcher teve sua primeira edição nos Estados Unidos em 1951, se não me engano, e foi sucesso imediato. Li-o lá mesmo em 57, já era parte de um “culto” salingeriano que parece não terminar nunca, pois todo adolescente, apesar das extraordinárias mudanças culturais ocorridas no último meio século, continua a se identificar com o Holden Caufield na sua relutância em aceitar as regras do mundo adulto. Como tradutores, não pensamos se havia ou não mercado para o livro, só quisemos ter o prazer de verter para o português (o que não era fácil pela necessidade de preservar o coloquialismo do original sem perder a qualidade literária) uma obra que tanto nos havia emocionado.

O título foi um drama. Os que leram o livro talvez se recordem que, numa conversa com sua irmã menor, Phoebe pergunta a Holden o que ele quer quer ser quando crescer, se cientista ou advogado, como o pai. Ele lhe diz porque não quer ser nada disso e, pressionado pela menina, um monumento de bom senso, confessa que se imagina num imenso campo de centeio onde brincam milhares de garotinhos sem nenhum adulto por perto senão ele. E que apenas ficaria na beira do abismo ali existente agarrando todos os garotinhos que pudessem nele cair. Por achar horrorosa a tradução literal de “Catcher in the rye”, propusemos o (belo, perdoe-me dizer) título de “A sentinela do abismo”, fiel à idéia e retirado do mesmo contexto do original. Qual o quê! O misterioso Salinger, naquele entonces já tomara conhecimento das traduções feitas em outras línguas e estabelecera como condição para a venda do direito a versão literal do título. Tentamos de tudo, numa ida a NY cheguei a descolar um encontro no Plaza Hotel com sua representante (chegar a ele, nem pensar!) a fim de explicar que aquela exigência poderia prejudicar de forma irreparável a receptividade ao livro. Tudo em vão, conquanto as primeira edições brasileiras contenham uma nota da editora dizendo que os “três jovens diplomatas brasileiros” haviam optado pelo outro título. Cumpre reconhecer, entretanto, que o JD tinha lá suas razões: em Portugal, “Uma agulha no palheiro” ainda me provoca pontadas da mais absoluta perplexidade; “Cazador oculto”, em espanhol, é tomar parte da imagem e convertê-la no seu contrário, associando-a à morte; e “L’attrape-coeurs”, em francês, me parece simplesmente boboca. Sabe-se lá o que fizeram em tâmil ou tagalo.

3- Vocês já tinham feito a tradução, quando a propuseram à editora? Rubem (contou você) não conhecia literatura americana. Como foi a reação de Sabino?

Eu e AA éramos conhecidos da Tijuca e do Colégio Militar desde sempre. Nos reencontrando anos mais tarde, quando nos preparávamos para fazer o exame de acesso ao Instituto Rio Branco, conferimos um amor comum ao Catcher e o desejo de traduzi-lo como pura homenagem à obra. Iniciado o trabalho quando já éramos terceiros secretários, um colega nos disse que outro diplomata, mais antigo do que nõs, também estava fazendo a tradução. Tratava-se do Antonio Rocha, ex-jornalista e ele próprio autor de ficção. Fomos procurá-lo acho que meio na base do “foi dada a partida, te cuida”, algo no gênero; o Rocha, porém, no seu jeito tranquilão, fez ver que não estaria empenhado em corrida nenhuma, já que traduzia o livro simplesmente pelo tanto que dele gostava. Obviamente, saímos do encontro com o curioso compromisso de empreender a tarefa a seis mãos – e com uma amizade que dura até hoje.

4- O Apanhador foi o segundo livro de autores não-brasileiros publicados pela Editora do Autor. Como(e onde) foi o lançamento? Você chegou a ter contato com (o silencioso e invisível) Salinger? Qual foi a reação inicial dos leitores brasileiros? Vocês sabiam que estavam traduzindo um dos mais importantes livros da segunda metade do século XX?; qual foi a reação dos editores ao descobrir que tinham um clássico nas mãos?

Eu e AA fomos para o exterior em 1965, quando o livro ainda não havia saído. Nem sei se houve lançamento, duvido muito. Também desconheço a reação do RB e do FS, ou o reconhecimento de que tinham mão um clássico, porém creio que não, pois deixaram os direitos de edição do Salinger com o Acosta (este sem dúvida um fã do livro) ao desfazerem a sociedade em 67. Os leitores brasileiros continuam comparecendo, o Apanhador já está na 13 ou 14a. edição, dizem que só a Bíblia o supera em número de exemplares no mundo todo. Muito embora aqui no Brasil o livro tivesse sido excluído das listas de leitura aconselhada em muitas escolas quando se noticiou que o assassino do Lennon carregava um exemplar do Catcher ao cometer o tresloucado ato. Dá para acreditar?

5- Como foi a relação com a editora? Era uma relação profissional? Pagava-se direitinho pela tradução? Como era RB como editor? Era bom pagador? Como foi que vocês chagaram aos outros livros de Salinger (Franny e Zooey, Nove estórias); você traduziu mais algum livro para a Editora do Autor?; também foram vocês que indicaram?

A relação sempre foi conduzida pelo Acosta, nunca mais tive contato com o RB após os movimentos iniciais que levaram á edição brasileira. Os honorários da tradução, recebidos quando eu já estava no exterior, não ultrapassaram a magnífica quantia de 100 dólares para cada qual dos três! Com o êxito imediato do Apanhador no Brasil, Acosta adquiriu os direitos relativos aos três outros livros de Salinger, desejando que nós os traduzíssemos também. Por falta de tempo, só aceitamos atacar a coletânea de contos “Nine stories”, traduzida por mim e por AA com o título “Nove estórias”. “Franny and Zooey” e “Raise high the roofbeam, carpenters – Seymour, an introduction” foram publicados pouco depois pela Editora do Autor com recurso a outros tradutores. No ano passado, a Companhia das Letras, tendo adquirido os direitos de edição brasileira do “Raise high…”, convidou-me para traduzi-lo. Sem falsa modéstia, vi que a tradução anterior ficava muito a desejar e, assim, tive a alegria de enfrentar mais uma vez os desafios de Salinger. Fica faltando o “Franny and Zooey” para completar o chamado “grand slam”.

6- Você esteve no apartamento de RB (na Barão da Torre)?; era fácil tratar de questões profissionais com ele?; falava sobre literatura?; depois de traduzir os livros de Salinger você fez traduções para outras editoras?

A primeira parte da pergunta está respondida em alguns dos outros comentários. A tradução do Apanhador foi o começo de um vício, que continuei a praticar ao longo da vida. Além do Salinger, os autores mais importantes que verti foram o Thomas Pynchon e, em especial, o Vladimir Nabokov, do qual já traduzi sete obras. Nos últimos anos, tenho trabalhado apenas para a Companhia das Letras. Segue em anexo a relação de minhas traduções e das editoras pelas quais vieram a público. Duro é que quase ninguém leu nenhuma delas, coisas do mercado nacional…

EXTRA:

Caro Marco Antonio,

Submeti a meus cotradutores as respostas sobre RB-Apanhador e recebi do Antonio Rocha alguns comentários interessantes, pois lançam luz sobre o contato com o Rubem e corrigem a informação errada que lhe dei sobre os honorários de tradução. Na realidade, depois dessa refrescada de memória, estou quase certo de que recebemos 51 dólares NO TOTAL, ou seja, 17 para cada branco, o que à época deu para comprar um modesto par de sapatos! Aí vão os trechos relevantes da correspondência do AR:

1) O encaminhamento à Editora do Autor deu-se da seguinte forma: eu ainda estava curtindo o inverno de Hamburgo e Schleswig-Holstein, pois corria o ano de 1964. Você. depois do episódio da Unctad I, ficou em casa e decidiu, então, retormar a tradução. Você me escreveu e eu remeti o texto, pois já havia concluído todo o livro.

Você fez aquela maravilhosa revisão para o carioquês e quando estava pronto o trabalho, pediu-me sugestões sobre editora. Encaminhei vocês ao Osvaldo Peralva, dono da editora Saga e que publicara meu primeiro livro “Amanha e Amanmha e Amanhã”. Peralva já estava tendo seus problemas com o regime, por isso, redirecionou vocês para a Editora do Autor. Acho bom a gente vincular o aparecimento do livro ao regime, pois o “Catcher” também pode ser lido como uma rejeição ao regime, na medida em que Holden odeia toda ordem estabelecidada. E a ditadura, qualquer uma, é “tragic” , num sentido em que coexiste com o “phony”.

2) Sobre quanto recebemos pela tradução, acho que há um engano seu. O pagamento de US$100. 00 foi o pagamento total. Eu mesmo, então curtindo o luar de Colombo, só recibi $30 dolares. SE o pagamento de cada foi de $100., você e/ou Alvaro me devem um almoço retrospectivo como pagamento de $70. que me abiscoitaram…

3) Acredito que tenha ajudado o fato de Rubem me conhecer da redação de “Manchete” e de nossos frequentes encontros na noite carioca.

Forte abraço,

Jorio