Não há lista minimamente séria dos melhores romances do século XX em que Lolita não apareça nas cabeceiras, muitas vezes na primeira posição. Difícil imaginar carreira tão brilhante para um livro que, recusado por quatro editoras norte-americanas, teve de ir ao prelo numa pequena casa parisiense que publicava até mesmo obras pornográficas. Mas o fato é que, nesses quase cinqüenta anos que transcorreram desde seu nascimento problemático, a obra-prima de Vladimir Nabokov (1899-1977) gerou uma verdadeira indústria, inspirando milhares de artigos, dezenas de teses de doutorado, um punhado de livros de análise literária e dois filmes. Mais ainda, preenchendo estranha lacuna vocabular, legou a várias línguas duas palavras que servem para designar aquelas adolescentes iluminadas por uma sensualidade diabólica: “ninfeta” e o próprio nome da personagem principal.
Como explicar esse fenômeno? Como entender o espaço que o livro passou a ocupar no imaginário mundial?
O primeiro motivo, cumpre admitir, tem a ver com o tema, a paixão desenfreada de um quarentão por uma menina de doze anos. Assunto sempre delicadíssimo, mas simplesmente chocante na longínqua década de cinqüenta, ainda fortemente marcada pelo que hoje chamaríamos de caretice. Outros elementos da história só serviam para fortalecer as reações de pudor das alminhas mais sensíveis: o pedófilo escrevia as recordações na prisão, onde cumpria pena por haver matado outro amante de meia-idade de sua jovem companheira; ele era um professor europeu, ela, uma jovem americana que, na realidade, já perdera a virgindade e toma a iniciativa na primeira relação carnal entre eles; a mãe da menina, uma viúva com quem o professor se casa a fim de ter acesso a sua presa, morre num acidente ao saber das reais intenções do marido… Dose pesada, até mesmo segundo os padrões liberais dos dias de hoje.
Daí que muitos — mas certamente apenas os que nunca se deram ao trabalho de ler o livro — imaginaram tratar-se de uma obra pornográfica; ou, ao ver que ela não tinha propósitos obscenos, num giro de cento e oitenta graus buscaram imputar ao autor propósitos moralistas e até mesmo a idéia de que, como escritor russo chegado poucos anos antes aos Estados Unidos para fugir da guerra na Europa, Nabokov queria mostrar o Velho Mundo sendo corrompido pelo Novo. Quanta bobagem, quando dirigida a um autor que sempre rechaçou qualquer tentativa de misturar a produção literária, vista como arte, com “mensagens” de qualquer tipo.
Além de surgir incidentalmente num ou noutro conto da fase em que escrevia em russo, a idéia central de Lolita já havia recebido um tratamento mais longo e menos bem sucedido num romance curto intitulado O mago. Sem dúvida, o tema atraía Nabokov por se tratar de uma situação-limite, pouco explorada na literatura séria e, por isso mesmo, com um grande potencial em termos da criação de novos tipos e interações humanas. Aliás, não é por outra razão que, entre suas grandes obras, consta a história de um pederasta louco que imaginava ser um rei exilado (Fogo Pálido) e um casal de irmãos que mantém uma relação incestuosa durante toda a vida (Ada). Em todos esses casos, a circunstância de lidar com figuras excêntricas e eventos insólitos não é usada para chocar o leitor, mas, pelo contrário, o convida a abrir seu compasso mental, a considerar sem preconceitos fenômenos que em princípio poderiam repugná-lo e até assustá-lo. Para que isso ocorra, é de todo necessário que os personagens, por sua densidade existencial, sejam capazes de merecer a atenção e, idealmente, a empatia de quem vai conhecê-los pelas mãos do autor.
É assim que Humbert Humbert, embora reconheça a crueldade e a vileza de suas ações como pedófilo, aparece diante de nossos olhos como um ser complexo, com uma trajetória pessoal em que está incrustada, lá atrás em sua juventude na França, uma precursora da menina da Nova Inglaterra. E também como um intelectual que, sem buscar justificar seu comportamento, não deixa de denunciar uma certa hipocrisia com que são tratadas as relações entre adultos e adolescentes no tempo e no espaço – lembrando, por exemplo, que a Beatriz de Dante tinha nove anos quando o poeta se apaixonou por ela, e que Laura conquistou Petrarca antes de completar seus treze aninhos. Entretanto, é esse homem torturado que, ao deparar-se após longa procura com uma Lolita grávida e precocemente envelhecida, supera enfim sua enfermidade e se oferece para casar com ela, tentando em vão lhe devolver a vida que ajudara a destruir.
A segunda razão pela qual a obra teve tamanho impacto é bem mais simples de explicar, e bem mais importante: o livro é muitíssimo bom!
Como em todos os escritos de Nabokov, cada palavra é escolhida sem afetação, mas com o esmero de um ourives selecionando as pedras preciosas que farão parte de uma coroa real. As descrições, ricas em símiles e metáforas, muitas vezes nos fazem ver as coisas mais banais de uma forma surpreendentemente nova. Malgrado as mudanças de ritmo da narrativa, a trama prende a atenção do começo ao fim, tendo um quê deliberado de romance policial. Enfim, nas palavras do próprio Nabokov ao definir a razão de ser de uma obra de ficção, o que Lolita nos proporciona é a “volúpia estética, um estado de espírito ligado, não sei como nem onde, a outros estados de espírito em que a arte (curiosidade, ternura, bondade, êxtase) constitui a norma.”
Por isso, se alguém conseguir ler o livro sem dar ao menos uma boa risada ou sem verter ao menos uma lágrima, é ruim da cabeça… ou deve voltar à primeira página e começar tudo de novo.