ONDE MORA A VERDADE NA UCRÂNIA

A invasão da Ucrânia pela Rússia tem gerado, além do conflito militar com milhares de vidas perdidas entre civis e militares, um outro embate entre as narrativas de um lado e do outro, nesse caso tendo como vítima a verdade.  Afinal, o que está mesmo em jogo nessa guerra?

Há duas maneiras de entender as relações internacionais. A primeira é representada pela vertente do liberalismo, segundo a qual todos os países deveriam obedecer a um conjunto de valores éticos, inclusive a não intervenção nos negócios de outros Estados. Caso você esteja em Brasília, Berlim ou Baltimore, o noticiário sobre a invasão da Ucrânia poderá convencê-lo de que os Estados Unidos e a OTAN estão movidos por esses elevados princípios e interessados apenas no bem-estar da população ucraniana. Mas quem vê a televisão em Moscou ou na Mongólia é capaz de se convencer de que os russos invadiram o país vizinho com o elevado propósito de salvaguardar os interesses dos chamados irmãos ucranianos, livrando-os de um processo de nazificação em marcha.

Diante desse impasse, a saída está em recorrer à segunda vertente de pensamento sobre as relações internacionais, o chamado realismo, segundo o qual cada país busca obter e usar o máximo de poder possível na defesa de seus interesses próprios. Os partidários dessa visão milenar a chamam de pragmatismo, os adversários de maquiavelismo. Mas, quando se trata das ações de grandes potências, essa é de fato a melhor maneira de entender o que está acontecendo.

Basta olhar o mapa da Europa para compreender a extraordinária importância da Ucrânia, segundo país com maior extensão territorial depois da Rússia, separados por uma imensa fronteira que atinge as costas do Mar de Azov, a saída de ambos para águas quentes via os Mares Negro e Mediterrâneo. Portanto, não é à toa que, desde o desmoronamento da União Soviética e a independência da Ucrânia, em 1991, esse país tenha se transformado num poderoso objeto de desejo pelo Ocidente.  

Assim, o que estamos vendo agora é a trágica evolução de um conflito de poder que muito pouco ou nada tem a ver com o gozo da democracia pelo povo ucraniano, e sim com interesses estratégicos vitais de uma Rússia incapaz de admitir que a expansão da OTAN atingisse sua “soft belly”. Nenhum russo esquece que Napoleão e Hitler chegaram a Moscou pelas planícies que têm origem da Ucrânia (e muito recentemente foram percorridas com total desembaraço e ao longo de centenas de quilômetros pelas tropas mercenárias de Prigozhin).

Mas isso também lembra algo que vivemos 61 anos atrás, quando os russos tentaram plantar foguetes nucleares em Cuba e os Estados Unidos reagiram com a ameaça de uma guerra total. Por tal motivo, muitos comentaristas independentes concordam em que a Rússia tinha fortes razões para querer impedir que a Ucrânia participe de uma organização militar que vê como sua inimiga; no entanto, ao recorrer à violência da intervenção armada, isso gerou uma repugnância praticamente universal.      

Aprendemos nos livros escolares sobre a Pax Romana e a Pax Britannica, mas estamos assistindo agora em tempo real aos estertores da Pax Americana que, nascida após a Segunda Guerra Mundial, se fortaleceu com a queda do Muro de Berlim e o desmonte da União Soviética no começo da década de 1990.

Ora, diante do risco de que a Alemanha e a maior parte da Europa se transformassem numa colônia energética da Rússia, o que observamos na Ucrânia é uma tentativa dos Estados Unidos, usando a OTAN como massa de manobra, para postergar a gradual perda de seu poder hegemônico, já ameaçado pela impetuosa ascensão da China. Não por acaso, a guerra na Ucrânia teve início poucos meses antes da entrada em operação do famoso gasoduto Nord Stream 2, que deveria aumentar substancialmente a capacidade anual de exportação russa de gás antes realizada através do Nord Stream 1. E também não surpreende que, em setembro de 2022, esses dois gasodutos tenham sido definitivamente desativados graças a diversas explosões cujos autores, é claro, jamais foram ou serão identificados.

Na verdade, portanto, o que está ocorrendo não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas uma guerra em território ucraniano entre duas potências nucleares na qual cada uma entende estar defendendo interesses estratégicos essenciais. Daí a enorme dificuldade em imaginar alguma solução negociada diretamente entre as partes ou fruto da intermediação conduzida por terceiros. Assim, como também não se afigura possível a vitória militar inquestionável de qualquer um dos lados, somos levados a especular sobre outros possíveis desfechos. Por exemplo, o que acontecerá com a posição dos Estados Unidos se, na próxima eleição presidencial, os democratas forem derrotados por Trump? Prevalecerá a forma trumpiana de isolacionismo representada pelo America First? Ou, olhando para Moscou e vendo a óbvia fragilização de Putin, será que ele pode ser removido aos acordes da Cavalgada das Valquírias de Richard Wagner?

                                                                       Jorio Dauster