Álvaro Alencar

DEPOIMENTO DO EMBAIXADOR

JORIO DAUSTER

PARA O LIVRO

“Álvaro Alencar”

ENTREVISTADOR

Gravando depoimento sobre o livro “Álvaro Alencar”. Embaixador Jorio Dauster com a palavra.

EMBAIXADOR JORIO DAUSTER

O Álvaro foi um companheiro de toda a vida. Passamos a infância na Tijuca, morando a alguns quarteirões de distância e mais tarde cursamos o Colégio Militar do Rio de Janeiro, embora então nos víssemos pouco porque estávamos em classes diferentes. Voltamos a nos encontrar depois que ele voltou dos Estados Unidos, onde o Álvaro tinha ido fazer um curso de inglês. Ele falava e escrevia inglês muito bem, tendo chegado a ser professor do idioma (e dado aulas particulares para minha mãe).

A essa altura já estava cursando no Instituto Rio Branco e ele se preparava para fazer o exame de admissão. A primeira conversa que tivemos acabou derivando para traduções. Eu lhe disse que tinha um único livro que fazia questão de traduzir e ele disse que também só tinha um livro que queria traduzir – e obviamente se tratava da mesma obra – “Catcher in the Rye”, de J. D. Salinger. O livro foi publicado no Brasil com o título de “O apanhador no campo de centeio” e contou também com o Antonio Rocha como co-tradutor. Anos depois eu e o Álvaro traduzimos a quatro mãos a coletânea de contos do Salinger intitulada “Nove estórias”. Mas ele nunca me mostrou nem ao menos um capítulo do romance de espionagem que, aparentemente, passou décadas escrevendo e deixou inacabado.

Como o Álvaro foi o primeiro colocado em Economia no Curso do Instituto Rio Branco, os preclaros Chefes da Casa entenderam que ele era bom de números e o lotaram na Divisão de Orçamento. Pouco depois, quando foi criada a Secretaria Geral para Assuntos Econômicos, eu fui chamado pelo Embaixador Jayme  Azevedo Rodrigues para ser seu Chefe de Gabinete. O Jayme tinha sido meu Professor no Instituto Rio Branco, havendo se afastado na época da crise Jânio/Jango a fim de ir para o Rio Grande do Sul lutar, se necessário, pela constitucionalidade do país, porém terminou sendo marginalizado durante algum tempo. Mas a economia nunca tinha sido seu forte e ele sabia que eu tinha um interesse especial pelo assunto. Naturalmente, tratei logo de levar comigo o Álvaro, fazendo com que vivêssemos juntos uma imensa aventura política e econômica que marcou muito nossas vidas profissionais. Por isso, acho que vale a pena nos determos um pouquinho aqui. Quando o Jayme Azevedo Rodrigues recebeu em caráter póstumo a Grã Cruz Ordem do Rio Branco, em 1993, escrevi uma Carta aos Jovens Colegas, publicada no boletim da ADB (Ano I, nº 2), em que abordei os elementos centrais do complexo processo diplomático que desaguou na realização da primeira UNCTAD.

Vale lembrar que, no início da década de60, aAmérica Latina vivia uma profunda crise econômica, agudizada pela tomada de poder de Fidel Castro em Cuba que trouxe a Guerra Fria para dentro do Hemisfério. Não foi à toa que estivemos bem perto do fim do mundo durante a crise dos mísseis de 62.

Nos anos 50, criara-se na ONU um movimento de conscientização do subdesenvolvimento como um fenômeno histórico específico que atingia um grande número de países, muitos dos quais recém saídos do estado colonial. Nesse tempo, serviam em nossa missão junto à ONU, além de Antonio Houaiss (que se dedicava de corpo e alma ao processo de descolonização), o Miguel Osório de Almeida e o Sérgio Rouanet, que, trabalhando na área econômica, deram força à idéia de convocação de uma conferência onde seriam debatidos todos os problemas comerciais dos países chamados à época de “atrasados”. Mas, obviamente, naquela fase de esquentamento da Guerra Fria, as potências ocidentais viram o esforço de reformar a ordem econômica pós-Segunda Guerra como algo bastante ameaçador, pois não estávamos questionando apenas os desequilíbrios nos mercados de produtos de base, mas também nos de bens manufaturados e dos chamados invisíveis (fretes, seguros etc.). Sustentávamos ademais a necessidade de se criar a Organização Internacional do Comércio, abortada em 1948 graças à oposição dos Estados Unidos, em substituição ao GATT, que não passava de um clube de ricos.

Tudo isso foi muito importante porque, até aquele momento, o mundo era cindido no sentido Leste/Oeste – e a expressão hoje corriqueira da divisão Norte/Sul nasceu então. Ao Brasil, e especificamente a nós na Secretaria Geral de Assuntos Econômicos, coube organizar o grupo latino-americano, que se articulou com os grupos asiático e africano para formar o Grupo dos 77 sob o lema “subdesenvolvidos, uni-vos”. Como parte dessa vasta operação diplomática, o Jayme chefiou duas grandes missões para visitar países da América Latina, tendo eu o acompanhado na parte norte do circuito e o Álvaro, na parte sul.

Nós compartilhávamos inteiramente não só as pesadas tarefas cotidianas, mas sobretudo os ideais que presidiam aquele profundo realinhamento das forças internacionais. Dividimos também o ônus que resultou de nossa atuação, pois o golpe militar de 31 de março nos alcançou em Genebra, em plena I UNCTAD, e Jayme  Azevedo Rodrigues, Sérgio Rouanet, eu e Álvaro fomos afastados da delegação e chamados de volta ao Brasil como subversivos. É interessante ver como o Rouanet se firmou como grande filósofo e hoje pertence à Academia Brasileira de Letras, enquanto eu e o Álvaro recuperamos nossas carreiras. Infelizmente, contudo, o Jayme  Azevedo Rodrigues não pôde fazê-lo, tendo sido vitimado física e psicologicamente pela perda de seus direitos políticos.

Depois disso, o Álvaro foi removido para a Embaixada em Ottawa, decidido a estudar Economia, e por coincidência eu terminei indo para o Consulado Geral em Montreal, também empenhado em retomar os estudos econômicos, porém movido em especial pela possibilidade de trabalhar com o Miguel Osório de Almeida, ele também marginalizado pela Revolução. Além do convívio intelectual extraordinariamente estimulante com Miguel Osório, um dos maiores talentos do Itamaraty, aproveitei para aprender a lutar boxe com quem anos antes disputara as luvas de prataem Miami. Eo Álvaro vinha freqüentemente de Ottawa para estar conosco, pois também tinha enorme admiração pelo Miguel Osório. Na própria Embaixada ele teve a sorte de trabalhar com o Paulo Nogueira Baptista, outra figura excepcional da carreira diplomática, que, quando foi chefiar a missão do Brasil junto à ONU, levou o Álvaro como seu número dois.

A experiência do Álvaro em Ottawa ainda foi mais rica porque lá ele encontrou sua esposa Hannelore, uma jovem enfermeira alemã que iluminou os últimos meses de vida do filho da Embaixadora Vasconcellos. Não surpreende que o Álvaro se houvesse apaixonado por aquela figura tão boa e dinâmica, no que contou com o apoio total de seus amigos de Montreal. Daí nasceu uma forte amizade entre os dois casais, depois estendida a nossos filhos, a qual sobreviveu incólume aos longos períodos de afastamento que a carreira impõe a seus integrantes.

ENTREVISTADOR

Uma pergunta: Nessa época, quais eram os autores ou livros prediletos do Álvaro e que mais influenciaram o pensamento dele.

EMBAIXADOR JORIO DAUSTER

Ele conseguiu completar o mestrado, mas não me recordo qual foi o tema de sua tese. Nosso interesse, permanente era, porém, o comércio internacional e as formas pelas quais se processava a espoliação dos países periféricos. Tanto o Álvaro quanto eu sempre tivemos um forte sentimento nacionalista, o que, naqueles anos de chumbo, fazia com que nos caracterizassem como homens de esquerda. Rótulo até meritório diante da sujeição aos desígnios dos Estados Unidos que marcava os da direita, mas o fato é que nenhum de nós jamais freqüentou agremiações de cunho político ou mesmo se entregou a elucubrações ideológicas. Uma das coisas que nos uniu por tantas décadas foi justamente o fato de sermos pessoas com fortes convicções, mas de temperamento pragmático. As infindáveis negociações comerciais de que participamos, apesar de frustrantes em termos históricos, eram o instrumento de que dispúnhamos para fazer alguma coisa pelo Brasil e pelos países em desenvolvimento.

Ao sair de Montreal, Álvaro foi para o Consulado Geral em Hong-Kong acompanhando o Miguel, que, quarenta anos atrás, já achava importante conhecer melhor a China – ele que já tinha passado pela Rússia e estudado profundamente o país utilizando instrumentos econométricos pouco comuns no Itamaraty. Foi uma fase muito profícua para o Álvaro sob todos os aspectos, mas dela guardo um episódio engraçado do ponto de vista humano. Eu havia chegado na então Tchecoslováquia em 1968, em plena “primavera de Praga”, sabendo que o Álvaro, então em Hong-Kong, planejava fazer então a primeira visita à família de Hannelore, na Alemanha Oriental. Naquela época, isso era uma coisa bem complicada porque o Brasil não mantinha relações com aquele país. Nas cartas que havíamos trocado ficara acertado que ele daria uma esticada em Praga, coisa confirmada num telefonema que me deu já da Alemanha Oriental. E lá estavam ele e Hannelore (grávida do primeiro filho, Álvaro Alberto) na pequena aldeia quando, certa noite, começam a ouvir um ruído estranhíssimo. Junto com os agitados familiares de Hannelore, correm para a beira da estrada e ali ficam, embasbacados, vendo as longas colunas de tanques que seguiam rumo à Tchecoslováquia naquele fatídico 20 de agosto.

O Álvaro estava assim assistindo os primeiros movimentos da invasão da Tchecoslováquia enquanto eu, em Praga, não sabia ainda que os tanques estariam chegando pela manhã. Com as fronteiras fechadas, obviamente a visita deles não pôde se realizar. Mas, um dia depois, ainda no torrão natal de Hannelore, ele foi buscado por um enorme carro preto para conversar com o sujeito que presumiu ser agente da Stasi, interessadíssimo em saber exatamente o que estava fazendo ali naquela hora um diplomata de um país hostil ao seu e que comunicações eram aquelas que mantinha com um colega sediado justamenteem Praga. Asconversas, sempre muito cordiais, se repetiram nos dias seguintes, até que o Álvaro, compreensivelmente assustado, se mandou de volta para o Ocidente. Mas sempre trocávamos boas risadas ao recordarmos esse curioso momento em que uma oportunidade de reencontro nos foi negada por poderosas forças históricas.

Depois disso, ficamos afastados anos a fio, ele na SUBIN, órgão do Ministério do Planejamento, eu em Londres e depois na presidência do IBC. Ocupando uma função para a qual estava inteiramente capacitado, seja por envolver contatos com vários organismos internacionais, seja por servir de “liaison” entre o Itamaraty e as autoridades econômicas do país, Álvaro era parte integrante da equipe do ministro Funaro quando foi declarada a moratória da dívida externa, gesto que recebeu com entusiasmo ao ver nele uma manifestação de independência política (conquanto, na verdade, fosse fruto da exaustão total das reservas brasileiras). Seja como for, quis a vida que ele estivesse presente na suspensão dos pagamentos aos credores e a mim coubesse, em1990, atarefa de negociar o fim da moratória. Foi a primeira vez que se designou um Embaixador Extraordinário para a Negociação da Dívida e sei que o Álvaro apoiou meu nome junto a pessoas que tiveram influência na escolha.

Conquanto nos víssemos pouco nos anos seguintes, chegamos a fazer férias conjuntas que ajudaram a selar a amizade entre os filhos, que dura até hoje. Além disso, sempre que possível nos enfrentávamos numa quadra de tênis, onde o poderoso desejo de vencer de ambos só era superado por nossa incompetência no manejo da raquete. Pelejamos até bem pouco tempo atrás, quando o enfisema adquirido por conta de décadas de tabagismo impediu o Álvaro de se entregar àquelas árduas disputas.

Não obstante, conversávamos longamente em torno de um chope ou um uísque, sempre analisando a economia brasileira e sofrendo a infelicidade de lutarmos, até recentemente, com aqueles enormes “déficits” em conta corrente que sufocavam nosso crescimento. O Álvaro permaneceu mais convicto do que eu quanto aos métodos de ação que advogáramos no passado, pois devo confessar que, tendo ido para o “outro lado do balcão”, na esfera privada, fui obrigado a rever alguns conceitos sobre a efetividade das tratativas internacionais e os benefícios da intervenção estatal na economia. Cumpre assinalar, porém, até mais do que a coerência de seu pensamento, a constante dedicação do Álvaro aos interesses brasileiros.

ENTREVISTADOR

Com relação aos ideais do passado que mencionou, com forte carga de nacionalismo econômico, como explicitaria, talvez com alguns exemplos.

EMBAIXADOR JORIO DAUSTER

O Álvaro tinha, como eu, uma visão aguda da injustiça social no Brasil. Entendíamos que a situação de abandono de milhões de brasileiros era inaceitável e, embora se devesse em grande parte à falta de visão de nossas elites, também decorria dos desequilíbrios nas relações econômicas internacionais, que, entre outras coisas, impediam que produtos em que somos competitivos tivessem maior acesso aos mercados dos países ricos. Não era, portanto, uma visão meramente interna porque, como diplomatas, tínhamos acumulado uma larga experiência com respeito aos caminhos e descaminhos do mundo. No caso do Álvaro, ao servir na FAO ele havia lidado diretamente com a fome, com a pobreza extrema. Essas coisas estavam fortemente enraizadas no pensamento dele. O Álvaro sabia bem que a primeira UNCTAD representara a luta por uma reforma profunda do sistema internacional, mas aquele impulso só havia tido algo de revolucionário no seu primeiro momento, porque depois os “donos do mundo” a cooptaram, transformando-a em mais uma entidade, numa organização sem poder decisório. Só bem mais tarde surge OMC, resgatando uma idéia que fora abortada meio século antes pelo Congresso americano. Mas continuavam os impasses de sempre, as velhas barreiras protecionistas permaneciam travando o comércio de produtos agrícolas, os países desenvolvidos não deixavam de buscar vantagens inaceitáveis no campo da propriedade intelectual, e por aí vamos. O Álvaro não esquecia isso um só instante e estava sempre pronto a encarar mais uma batalha.

ENTREVISTADOR

Quer dizer que talvez naquela época houvesse uma consciência mais sensível para esses problemas, talvez a linguagem tenha sido abrandada através de eufemismos.

EMBAIXADOR JORIO DAUSTER

Nossa linguagem diplomática nessa área terá sido mais contundente no passado, porém a postura de luta por um mundo mais justo não foi abandonada. Na área comercial, por exemplo, isso se expressa na liderança que o Brasil hoje exerce no Grupo dos 20, à qual se chegou por conta de uma construção feita laboriosamente ao longo de décadas. Lembro-me de que eu e o Álvaro estávamos escrevendo à noite as instruções para a I UNCTAD, naquele edifício que chamávamos de “Niterói do Itamaraty”, enquanto se realizava o famoso Comício da Central, última tentativa do Jango para mostrar que contava com o apoio das forças militares. Imagine escrever instruções para uma conferência de tamanha relevância ouvindo toda aquela algazarra diante do vizinho Ministério da Guerra. Isso serve para mostrar como mudou o Brasil e o mundo, inclusive porque desde então ocorreu uma significativa diferenciação entre os paísesem desenvolvimento. Naquelaépoca, era mais fácil articular posições coletivas, como no Grupo dos 77, porém hoje são cento e tantas nações em estágios muito diferentes de renda, educação, industrialização. Quando eu e o Álvaro iniciamos nossas carreiras, o Brasil tinha uma exportação total pouco superior a um bilhão de dólares anuais, praticamente tudo representado por receitas de produtos primários e com o café responsável por mais da metade disso. O Brasil era um fazendão e nossos problemas, evidentemente, muito diversos daqueles que enfrentamos nos dias de hoje.

ENTREVISTADOR

Como ele via o papel da América do Sul, do Mercosul, da integração latino-americana, chegaram esses temas a fazer parte das prioridades do Álvaro?

EMBAIXADOR JORIO DAUSTER

Não sei se ele chegou a trabalhar diretamente com tais questões porque, quando voltei a encontrá-lo em Brasília mais recentemente, ele tinha vindo de Cuba e estava trabalhando como Assessor Especial do Secretário-Geral. Certamente se preocupava com essas questões e era favorável ao Mercosul, apesar de todos os seus defeitos. A América do Sul como espaço geopolítico em que o Brasil tem de marcar seu destino histórico sempre esteve presente no pensamento dele, mas talvez outros colegas possam trazer subsídios concretos sobre o que fez nesse terreno.

ENTREVISTADOR

Muito obrigado; encerrado o depoimento do Embaixador Jorio Dauster.