Pede-me o embaixador Álvaro da Costa Franco que contribua com algumas palavras para introduzir o depoimento de Miguel Ozorio de Almeida a ser publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão. Desafio irrecusável, porque Miguel foi minha maior influência no início da carreira e amigo fraterno até que a isquemia cerebral o afastou cruel e prematuramente da linha de frente enquanto os ventos profissionais me sopravam para outras paragens.
Descubro, porém, que meu agridoce exercício de rememoração foi facilitado pela brilhante exposição de Geraldo Holanda Cavalcanti num retrato de corpo inteiro daquele homem que, pela dificuldade em lidar com tons intermediários entre o preto e o branco, era também objeto de fortes afinidades e grandes rejeições. E ninguém melhor do que o poeta Geraldo Holanda apreendeu um dos traços mais marcantes da personalidade de Miguel nos belos versos em que mostra como ele e Clarice Lispector (também pertencente ao círculo diplomático de Washington no final da década de 50) faziam uso da palavra de formas tão distintas.
E foi lá que o conheci ao passar um ano como estudante na casa de meu então cunhado Luiz Paulo Lindenberg Sette. Mais tarde, quando já ia iniciar o Curso Rio Branco, ele me convidou para auxiliá-lo numa pesquisa sobre a frigorificação no Brasil, ocasião em que me coube pilotar uma máquina de calcular Friden para processar as montanhas de dados estatísticos que faziam a alegria de Miguel.
Passados mais alguns anos, ele e Sérgio Paulo Rouanet lutavam na ONU pela celebração de uma grande conferência que marcaria a divisão entre países ricos e pobres, pondo a nu o conflito Norte-Sul até então ofuscado pela clivagem Leste-Oeste da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, num Itamaraty dividido pelas tensões políticas que arrastavam o Brasil para o abismo da ditadura militar, três jovens diplomatas – eu, Álvaro Alencar e Carlos Átila Álvares da Silva – assessoravam o embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues no esforço de tornar realidade aquele importante evento internacional que deu origem à UNCTAD.
Marginalizados pela revolução de 1964, Miguel e eu terminamos por nos reunir no Consulado Geral de Montreal (não sem antes ter de superar as resistências de certos colegas desejosos de evitar a criação de um “ninho de subversivos” em terras canadenses). Preparando-me para estudar economia na Universidade McGill, Miguel em poucas semanas me levou das quatro operações ao cálculo integral e às matrizes – fazendo aquilo de que mais gostava, que era ensinar a alguém matemática, economia e boxe. Morando em casas contíguas, fui seu pupilo ideal: além dos estudos conjuntos de probabilidade e dos levantamentos de elasticidade cruzada que fizemos para os produtos de exportação brasileira (e que certamente ninguém jamais leu na Secretaria de Estado), avancei o bastante nas artes pugilísticas para justificar a encomenda de um protetor de dentes, por sorte tornado desnecessário quando Miguel foi transferido para Hong Kong.
Desse rico convívio em Montreal, entre muitas recordações que vão do pungente ao hilariante, destaco uma que simboliza a paixão de Miguel pelas ciências e sua capacidade excepcional de raciocínio – ele que, segundo dizia, foi ser diplomata porque o pai, o grande fisiologista Álvaro Ozorio de Almeida, interlocutor de Marie Curie e outros luminares internacionais, o impediu de seguir suas pegadas. Pois bem, ao fazer esforços físicos continuados, estourava-me uma dor de cabeça insuportável, problema que submeti à consideração de Miguel antes de me entregar aos médicos locais. Um dia depois, Miguel perguntou-me o que eu fazia ao sair de casa pela manhã e, como estávamos no inverno, relatei que ligava o carro na garagem fechada antes de abrir a porta e limpar com a pá a neve caída na véspera. Tiro e queda! Eu estava sendo gradualmente envenenado pelo dióxido de carbono, que ia substituindo nas hemácias o oxigênio que me faltava nos momentos de maior esforço. Diagnóstico por ilação, àla SherlockHolmes, e solução confirmada sem necessidade de que eu fosse perfurado ou, mais modernamente, escaneado.
Bem depois, quando o Itamaraty de Gibson não quis receber de volta o irmão de um banido, fui trabalhar no INPI por interferência de Miguel junto ao Comandante Thedim, presidente do recém-criado órgão. Nessa época, participei de uma delegação presidida por Miguel a importante conferência da OMPI em Viena sobre marcas internacionais. Para surpresa de todos, no primeiro dia de reunião a poderosa representação da Alemanha, com apoio de vários países europeus, apresentou a proposta de um convênio sobre caracteres tipográficos – não me lembro se queriam patentear a “pica” (pronuncia-se paica, por favor) ou sei lá o quê. No dia seguinte, Miguel fez um discurso pince-sans-rire em que lançou a ideia de um convênio sobre as notas musicais, reivindicando para o Brasil, com prioridade inatacável, o dó. As gargalhadas dos sisudos delegados sepultaram para sempre a pretensão germânica…
Esse é o Miguel que, nas viagens internacionais, levava uma mala pesadíssima onde havia um terno, duas camisas e um montão de livros, porque sua fome de saber e de transmitir o saber era inesgotável. O Miguel, nacionalista por convicção, que pensava com números um Brasil livre das amarras do subdesenvolvimento. O Miguel que nunca teve medo de defender suas ideias mesmo que contrariassem os poderosos de então. Farão bem as novas gerações do Itamaraty se buscarem conhecer melhor seu pensamento e cuidarem de seguir seu exemplo como homem público.
Embaixador Jorio Dauster
Rio de janeiro, junho de 2009