Lembranças

LEI MATERNA

Tânia e eu sempre fomos muito próximos um do outro, até mesmo por dividirmos um quarto até a pré-puberdade. Não obstante, às vezes ocorria um desaguisado que, em raras ocasiões, desembocava nas chamadas vias de fato. Numa dessas, atingi-a no calor da disputa com uma cotovelada de mau jeito e ela saiu chorando em busca da Mãe. Josefa chegou ventando e decretou: “Olha, daqui pra frente você nunca mais vai TOCAR na sua irmã! Você não vê que ela já tem peitinhos?” Como havia evidência incontroversa de que ela falava a verdade, valeu a lei materna e desde então se fez a paz entre os irmãos.

MÚSICA

Em nossa casa a literatura predominava sobre a música. Verdade que, desde que me entendo por gente, lá havia uma daquelas vitrolas que constituía por si só um móvel, com o braço dobradiço onde ficava a agulha de metal e – pasmem os mais novos! – uma manivela para se dar corda no aparelho. Alguns discos de música clássica eram ouvidos vez por outra e minha Mãe tinha fases em que se impregnava de tangos lancinantes e dos fados cantados pela Amália Rodrigues.

Tendo tocado clarinete na bandinha de Pau Gigante, o Pai, como vários de seus irmãos, tinha excelente ouvido mas raramente cantava – embora me lembre de que passou um bom tempo vidrado por aquela canção do Roberto Carlos que diz: “Quero que você me aqueça nesse inverno, e que tudo mais vá pro inferno.” A Mãe, por seu lado, era incapaz de solfejar o Hino Nacional.

Diante desse quadro pouco estimulante do ponto de vista musical, sei lá por quê decidi, quando tinha uns oito ou nove anos, que queria tocar violino. Consultas conduzidas pela Mãe indicaram ser melhor começar pelo piano a fim de dominar os fundamentos técnicos que me permitiriam chegar depois às cordas. Como Tânia também foi convocada para o aprendizado, que fazia parte da boa formação das moçoilas da época, num belo dia nos vimos tomando o bonde para ter a primeira lição. A professora morava numa dessas casas com porão e andar térreo mais alto, dando diretamente para a calçada. Mas logo verificamos que a mestra tinha uma quantidade incalculável de filhos pequenos e gatos de todos os tamanhos, com o que a sala de estar, onde o piano se apoiava a uma parede, cheirava loucamente a mijo.

Malgrado esses obstáculos, que teriam bastado para interromper a trajetória de qualquer Paganini caboclo, eu e Tânia íamos para o sacrifício umas duas tardes por semana, conquanto os avanços fossem necessariamente lentos pelo fato de que não tínhamos como treinar em casa (sem dizer que o apartamento da rua General Gabizo não comportaria mesmo nenhum instrumento de 88 teclas). Se não me engano, cada um de nós tinha que fazer aqueles exercícios chatíssimos de duas mãos por meia hora enquanto o outro ficava bestando pela sala. Eis que, numa desses períodos de espera, a Tânia chegou à janela e, do outro lado da rua, um tarado abriu a capa de chuva e lhe revelou algo para o qual ela certamente não estava preparada no frescor dos seus onze ou doze anos. Tremendo choque, confusão, já não me recordo dos detalhes, mas obviamente, ao voltarmos para casa, minha Mãe reagiu como se sua pobre filhinha tivesse sido violentada por mil demônios.

E assim terminou meu aprendizado de piano, motivo de grande júbilo naquele momento e muita frustração pelo resto da vida.

PÉ-DE-MOLEQUE

O Pai pertencia à espécie já virtualmente extinta dos “médicos de família”, aqueles que saíam a qualquer hora do dia ou da noite (com a indefectível maleta onde ficavam o estetoscópio, o aparelho de pressão, uma seringa e algumas drogas de uso emergencial) para encarar desde enfartes do miocárdio a crises de histeria causadas por problemas conjugais. Nunca tendo ligado para dinheiro ou bens materiais, cobrava as consultas em função das posses dos clientes, muitas vezes deixando até de ser remunerado sem que isso lhe causasse maiores dissabores. Como era ainda um clínico excepcional, capaz de fazer diagnósticos apreciados até pelos colegas, não admira que fosse muito querido por todos que recorreram a seus saberes.

Na legião dos admiradores constava uma senhora bem velhinha, que, em reconhecimento pelas visitas recebidas, costumava brindar o Pai com doces que ela mesmo fazia. Eis que, certa tarde, a Mãe, Tânia, Lucia e eu conversávamos após o almoço quando toca o telefone. Josefa, sempre ativa, se adiantou para atender e pudemos todos ouvir as duas frases que pronunciou – “Sim, é da casa do dr. José” e “Olha, pé-de-moleque melou é a puta que pariu!” –, seguidas da batida forte do fone no gancho. E ela já reclamava dos idiotas que davam trotes lá para casa quando segurou a cabeça com as duas mãos e disse: “Ai, meu Deus, era a cliente do José querendo saber se o pé-de-moleque dela tinha melado…”

É óbvio que caímos todos na gargalhada enquanto a Mãe, para se justificar, reproduzia as palavras da velhinha na entonação quase caricata que ela de fato tinha. Ríamos ainda quando o telefone voltou a tocar e a mãe pediu para a Tânia atender, imaginando que fosse outra vez a pobre criatura mas esquecendo que as duas tinham a voz bem parecida. Não deu outra, e Tânia, contendo com dificuldade a hilaridade que lhe transmitíamos de longe, insistia em que o telefone não havia tocado na última hora. E a velhinha, dizendo o quanto fora ofendida, repetia: “Não, não, eu sei que é a mesma pessoa que me atendeu agora há pouco!”

Acho que depois disso nunca mais fomos brindados com os docinhos da cliente de fé.