Poucos seres vivos têm um problema de identidade tão sério quanto o Meleagris gallopavo, aquela grande ave que já possui suficientes razões para ser triste porque os americanos a homenageiam com uma grande matança no dia da Ação de Graças e, por estas bandas, fazemos o mesmo ao comemorar o nascimento de Cristo.
Sim, estamos falando do popular peru, que na verdade é nativo das florestas da América do Norte e só ganhou este nome em português porque, no século XVI, nossos avozinhos imaginavam que ele proviesse, senão exatamente da terra dos incas (cujo nome em quíchua era piruw), da América espanhola. O problema começa a se adensar quando vemos que, em inglês, a ave recebeu o nome de turkey por ter sido confundida com a galinha-d’angola, a qual, por sua vez, era importada na Europa Central através da Turquia.
Obviamente, isso só faz acrescentar mais um complicador geográfico a este imbróglio etimológico, pois a referida representante da família dos numidídeos também é conhecida em português como galinha-da-guiné e, compreensivelmente, se chama em inglês guinea fowl. Mas a coisa se embaralha ainda mais ao vermos que o peru gaulês, o dindon, deve seu nome à fêmea da espécie, a dinde, assim chamada carinhosamente para designar a poule d’Inde.
Seja como for, pela extrema diversidade de denominações que carrega mundo afora, tudo leva a crer que a saborosa ave deve ter causado grande alvoroço na Torre de Babel. Com efeito, bom número de idiomas, do hebreu às línguas eslavas, segue a linha francesa e faz menção à suposta origem indiana diretamente ou pela via da cidade de Calcutá. No entanto, em aparente retaliação a essa atribuição enganosa, os falantes de grego e de khmer, por exemplo, não se pejam em pedir um sanduíche de “galinha da França”. Num processo semelhante de inversão, a língua híndi adotou o termo peru, que ali aportou com as caravelas portuguesas. Já em espanhol, reproduzindo o erro consagrado em seu nome científico, o peru atende por “pavo”, aumentando a balbúrdia por ser esta a palavra latina que designa o magnífico pavão, que pouco tem a ver geneticamente com o humilde frequentador de nossas panelas.
Talvez para escapar a esta salada geográfico-linguística, o mandarim, o coreano e o japonês partiram para uma solução de todo diferente, denominando-o a “ave de sete faces” – supostamente por representar as expressões do peru macho que refletem seus variados estados de espírito!
Não bastassem essas neurotizantes agruras planetárias, o peru sofreu no Brasil a suprema humilhação de ser transformado em alcunha pejorativa do pênis. Como existem fundadas dúvidas sobre a origem de tal uso, um grupo seleto de linguistas reuniu-se recentemente para examinar a questão, porém, talvez pela ingestão exagerada do destilado de cana de açúcar em que a referida ave é por vezes preparada, as duas correntes representadas no conclave não chegaram a consenso.
De um lado estavam aqueles que apontam para as semelhanças entre a ave galiforme – com sua cabeça e pescoço nus, além do apêndice carnoso situado debaixo do bico – e o membro viril em repouso, com seu adendo escrotal. Esta tese foi vivamente contestada pela facção contrária que, se valendo de diapositivos, ganhou muitos pontos ao comparar a aparência lúgubre da “ave de sete faces” com o ideal de virilidade encarnado no Davi de Michelangelo (malgrado alguns protestos da bancada feminina com respeito a certas proporções da famosa escultura).
O outro grupo de estudiosos argumentou que tudo começa lá atrás, quando a mamãe passa talco no pipiu do filhote e alguns anos depois, caso ele se revele algo precoce, é obrigada a lhe dizer: “Menino, pare de ficar mexendo nesse pintinho o tempo todo!” Mais adiante – sustentam tais cientistas – o pintinho vira pinto e, já em plena adolescência, a esperada evolução anatômica exige sua promoção a peru. Quod erat demonstrandum.
Todavia, não tendo sido possível conciliar essas doutas correntes de pensamento, ficou decidido que as duas hipóteses serão submetidas ao público para que se elimine democraticamente ao menos uma das incógnitas que envolvem a atribulada ave. O slogan da pesquisa já foi escolhido: SUA PERUADA VALE TANTO QUANTO A MINHA!