Citações de Fernando Henrique Cardoso e comentários

DIÁRIOS DA PRESIDÊNCIA   1997-1998

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Companhia das Letras

Sábado, dia 29 de março de 1997

Depois tive uma longa reunião com os embaixadores. O [Ronaldo] Sardenberg escreveu uma nota, juntando tudo, foi uma boa reunião. Primeiro com um grupo grande: Paulo de Tarso, Rubens Barbosa, Jorio Dauster, [Luiz Felipe] Seixas Corrêa mais os da casa, o Celso Lafer, enfim, uma vista da política brasileira. Há certa discrepância.

Uns, Jorio Dauster à frente, com apoio do Luciano Martins e do Rubens Barbosa, preferiam um choque entre Brasil e Estados Unidos na questão da Alca. Outros acham que não há tanto a perder assim, que os Estados Unidos também não ganham sempre e que a integração é uma tendência irreversível. Essa é a posição do Seixas Corrêa e, com mais moderação, do próprio ministro Lampreia. Claro que o ministro Sardenberg se alinha ao primeiro grupo.

No geral, todo mundo percebe que o nosso jogo é: relação com o Mercosul ou relação com os Estados Unidos? Para permitir avanços e dificultar a concretização do acordo de livre comércio. Chamei a atenção para a nossa falta de clareza sobre várias áreas do globo. Sabemos algo das Américas e mesmo assim não sabemos muito bem o que fazer sobre a América Central nem o Caribe. Sabemos [o que fazer] sobre Europa e União Europeia, mas e a Rússia? E, mais adiante, China, Índia? Até que ponto são parceiros estratégicos como dizemos? Uma relação Brasil-China-Rússia-Índia tem mesmo sentido? Ou é mais retórica? Enfim, temos que separar o joio do trigo para ter uma ação mais eficaz, concentrar recurso naquilo que é possível fazer.

Depois almoçamos com os embaixadores e os ministros da área econômica. Malan não veio porque está doente, mas vieram o Pedro Parente, 57 o Kandir e o Dornelles. O Dornelles está alinhado em que a negociação [da Alca] vai ser feita, mas ninguém garante qual vai ser o fim dela; se for necessário rompemos. Kandir acha que temos que ganhar tempo para nos reforçar na nova fase da industrialização e da integração na economia mundial. Kandir, aliás, fez uma boa exposição, mostrou que não havia risco nenhum de desacertos imediatos na área cambial, na área externa em geral. Alguns embaixadores temem, sobretudo o Jorio, que haja alguma brecha comercial que nos leve a uma crise. Foi uma reunião muito boa no sentido de esclarecer as dúvidas que temos, que não são muito diferentes daquelas que os economistas haviam discutido no almoço já registrado.

Comentário: Durante todo seu governo, FHC organizou diversas reuniões que, como a aqui registrada, reuniam os assim chamados “cardeais” do Itamaraty, vindos das principais missões no exterior, com os chefes da Casa, principais assessores da Presidência e, frequentemente, membros da equipe econômica. Apesar de conhecer bem os assuntos tratados, ele que já fora Ministro das Relações Exteriores, falava muito pouco e, quando intervinha, era em geral para avivar mais as chamas do debate, estimulando ao máximo o confronto de ideias. Essas ricas experiências intelectuais e políticas não terminavam com vencedores e perdedores porque FHC não buscava definições imediatas e sim combustível para suas futuras decisões.

No caso em pauta, a discussão principal era se o Brasil devia ou não alinhar-se aos Estados Unidos para levar adiante a criação da Área de Livre Comércio das Américas ALCA), cuja carta de intenções fora assinada em 1994 por 34 países do continente (com a única exceção de Cuba). O projeto, extremamente ambicioso, se baseava no NAFTA (que reunia Estados Unidos, Canadá e México) e abrangia  não somente o comércio de bens, mas as delicadas áreas novas de serviços, investimentos estrangeiros, compras governamentais e patentes, com especial atenção para aquelas do setor farmacêutico.

Embora todos os presentes à reunião fossem favoráveis a processos de integração internacional, eu de fato, como indica FHC, liderei naquela ocasião a oposição contra a postura que se desenhava ligeiramente predominante a favor a ALCA. Assim o fiz por entender que as vantagens muito imitadas que o Brasil podia esperar em matéria de liberação do mercado de produtos agrícolas nos Estados Unidos não compensavam os enormes riscos que correríamos no setor industrial e nas chamadas áreas novas, favorecendo, por isso, o fortalecimento alternativo do MERCOSUL em que exercíamos um papel de liderança. O debate se estendeu ainda por muitos anos, até 2005, quando o projeto da ALCA foi definitivamente enterrado.

Sábado, 29 de março de 1997

Depois de ter feito esse balanço com o Eduardo, combinei de receber o Jorio Dauster no domingo, amanhã, portanto. Quero sondá-lo para a Agência Nacional de Petróleo. Já tinha falado com o Eliseu Resende sobre o nome dele e com o Clóvis e o Eduardo Jorge. Vejo que ele reage porque tem problemas financeiros, preferia ficar no exterior, mas não fechou as portas.

Terça-feira, 1 de abril de 1997

Hoje é 1º de abril, terça-feira, são oito e vinte da manhã. Domingo à noite, dia 30, recebi o Jorio Dauster para tentar convencê-lo a vir para a Agência Nacional do Petróleo. Baldados os esforços. Ele tem problemas familiares, falta de recursos, vai ter que construir uma casa em Brasília, ficará pelo menos um ano e meio ou dois em Bruxelas. Depois conversei longamente com ele sobre a questão do comércio exterior. Ele vai fazer e passar ao Lampreia um paper sobre a ação do governo nessa matéria.

Comentário: Uma das grandes realizações do governo de FHC foi a criação das agências reguladoras, pelas quais a intervenção do Estado em grande número de setores da economia passou a ser feita de forma indireta através de autarquias que têm suas funções determinadas por lei. Fiquei assim muito sensibilizado com o convite do presidente para ser o primeiro diretor-geral da importantissima ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis), que iniciou suas atividades em janeiro de 1998. Infelizmente, depois de ter passado alguns anos no Brasil como presidente do IBC (Instituto Brasileiro do Café) e negociador da dívida externa, com salários muito baixos, eu não teria condições de voltar a passar iguais dificuldades no momento em que me comprometera financeiramente com a construção de uma casa em Brasília, o que exigia minha permanência como embaixador junto à União Europeia por mais algum tempo. A posição foi ocupada então por David Zilberstein, mas, quando voltei a ser sondado para o cargo, em 2001, tive o prazer de sugerir o nome de meu colega e amigo Sebastião do Rego Barros, à época embaixador em Buenos Aires.

Como FHC registra em seu diário, fui recebido por ele para a conversa final sobre a ANP num domingo à noite. Para minha surpresa, naquele soberbo Palácio da Alvorada, quase às escuras, estávamos só nos dois e, desde o uísque inicial e o jantar bastante frugal, tivemos uma conversa informalíssima que se estendeu por horas. Como assinala a entrada no diário, o tema principal não pôde deixar de ser o comércio internacional, e posteriormente de fato entreguei a meu amigo Lampreia o paper solicitado pelo presidente.