O trocadilho – ou paranomásia quando veste o traje a rigor – é a nêmesis dos tradutores. Como figura estilística, o também chamado calembur utiliza palavras de forma ou sonoridade similares na mesma frase para obter um efeito em geral cômico. Como são tipicamente construções idiomáticas, específicas de determinada língua ou cultura, os trocadilhos representam um imenso desafio para quem deve vertê-los em outro idioma e outro meio cultural, suscitanfo a questão da intraduzibilidade e da adaptação que são comuns na área da poesia.
Os trocadilhos estão presentes em todas as linguagens e em todos os tempos. Embora desdenhados por muitos literatos como uma forma menor e vulgar, eles foram cultuados por grandes escritores, havendo quem diga que há três mil deles nas peças de Shakespeare – e, acrescento eu, certamente um bom número na obra de Nabokov, para citar apenas esses dois expoentes de estilos e épocas tão diferentes. Confrontado com um calembur, muitos tradutores simplesmente o ignoram e seguem em frente, mas o profissional sério terá de buscar em seu idioma alguma construção que “dê o recado” presente no texto original.
Mas certa vez me defrontei com um problema ainda mais espinhoso: um trocadilho que constitui o cerne de um conto, uma só palavra em torno da qual gira todo o sentido da história, um termo com forte carga emocional e cognitiva. Isso ocorreu quando traduzi o conto de J. D. Salinger “Down at the Dinghy”, publicado originalmente na revista Harper’s, em abril de 1949, e incluído na coletânea Nine Stories.
O conto está dividido em duas partes. Na primeira, a empregada da casa (Sandra) diz a uma diarista (Mildred, sra. Snell) que está muito preocupada que o filho de seus patrões, um menino de 4 anos chamado Lionel, possa contar à mãe (Boo Boo, uma das irmãs Glass e sra. Tannenbaum) certos comentários antissemitas que fez sobre seu pai. O menino, que costuma fugir de casa, foi se refugiar no bote ancorado junto ao cais da casa de veraneio, situada à beira de um lago. Na segunda parte, Boo Boo se esforça para que o filho lhe permita entrar no bote e, por fim, consegue que ele explique porque está fugindo. Lionel diz que Sandra chamou seu pai de um “big sloppy kike”. Embora ele não compreenda o significado desse insulto étnico, sente perfeitamente o peso de sua conotação injuriosa. Para os tradutores do conto, o problema reside no fato de que ele confunde a palavra “kike”, um termo ofensivo usado para designar um judeu nos Estados Unidos, e “kite”, uma pipa ou papagaio. Escusado dizer que Salinger era judeu e que o conto foi escrito logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, tendo o autor chegado com as primeiras tropas norte-americanas aos campos de extermínio em que se desenrolou o Holocausto.
Segue-se a parte relevante do diálogo entre Lionel e Boo Boo em “DOWN AT THE DINGHY” (NINE STORIES – The New American Library, 12th printing, 1962)
“Sandra – told Mrs. Snell – that Daddy’s a big – sloppy – kike.”
“Do you know what a kike is, baby?”
“It’s one of these things that go up in the air”, he said. “With string you hold.”
Tive a grande felicidade de, nesse caso, encontrar uma equivalência perfeita para representar em português o dueto kike-kite na mente de um menino da idade de Lionel: gringo-bingo, como se vê em “LÁ EMBAIXO, NO BOTE” (NOVE ESTÓRIAS – Editora do Autor, 1969) – Tradução de Jorio Dauster e Álvaro Alencar:
“A Sandra… disse à Mildred… que papai era… um gringo nojento.”
“Você sabe o que é gringo, meu bem?”
“É aquele jogo de pedrinhas com os números”, ele disse, “que a gente vai enchendo o cartão.”
Meio século depois de publicada essa tradução, Caetano Galindo foi chamado a fazer nova versão do livro e, em “LÁ NO BOTE” (NOVE HISTÓRIAS – Editora Todavia, 2019), se lê:
“Sandra – disse para a sra. Snell – que o papai é um judeu – sovina.”
“Você sabe o que é um judeu sovina, meu bem?”
“É um daqueles caras”, ele disse, “aqueles caras que sovam o pão.”
Ora, é forçoso convir que, malgrado a grande qualidade do tradutor, a solução do trocadilho por ele encontrada foi extremamente canhestra nesse caso. Primeiro, porque recorreu a uma suposta característica da raça judaica ao introduzir um elemento preconceituoso próprio, uma vez que no original não há nenhuma indicação da eventual sovinice do sr. Tannenbaum. Em segundo lugar, apelou duas vezes para a expressão “aqueles caras” a fim de dar um maior grau de coloquialidade, também não presente no original, à esdrúxula frase que se segue. E, em terceiro lugar – e mais importante do ponto de vista estritamente literário –, um menino de quatro anos JAMAIS falaria em “sovar o pão”, expressão que, aliás, eu nunca ouvi nem na boca de qualquer adulto.