JÔ – A ESPIRITUALIDADE

Minha mãe, talvez devido mesmo ao interesse pela filosofia que a fez catedrática dessa matéria no prestigioso Instituto de Educação do Rio de Janeiro, podia ser descrita como uma livre pensadora. Não esposava nenhuma crença, não frequentava nenhuma igreja, porém tinha rasgos místicos e, mais estranho, possuía alguns dons mediúnicos.

Quando Bluma nasceu com pequeno defeito no olho, causado aparentemente por um trauma durante a gravidez, Jô se sentiu culpada e, durante algum tempo, levou a filha para consultas com os mais famosos curandeiros da época, inclusive Zé Arigó, que durante cerca de vinte anos realizou cirurgias espirituais enquanto alegava estar incorporando um médico alemão denominado Dr. Fritz. Essas atividades o levaram a ficar conhecido nacional e internacionalmente, tendo tratado até mesmo a filha do presidente Juscelino Kubitschek. Nada resultou dessas consultas, mas infelizmente a sensação de culpa de Jô (ela odiava o Josefa) nunca desapareceu e contribuiu para que se criasse uma relação algo neurótica com a filha.

Como mostrarei, seus dotes mediúnicos são comprovados, mas jamais a estimularam a procurar cultivá-los ou mesmo lhes dar caráter institucional, mediante por exemplo a adesão ao kardecismo ou qualquer outra prática espírita. E aparentemente tais dotes eram uma herança da mãe, Italina América (que belo nome para a filha de um imigrante carcamano!), que praticava aquilo que se chama “mesas girantes” ou “mesas falantes”. Os participantes nas sessões em que eram utilizadas tais mesas, extraordinariamente populares em meados do século XIX, colocavam as mãos sobre elas que, por seus movimentos, soletravam palavras entendidas pelos crentes como mensagens enviadas por espíritos. Tais práticas foram adotadas nos mais elevados círculos sociais e intelectuais de então, tanto que Victor Hugo julgava se comunicar dessa forma não somente com a filha Léopoldine (morta por afogamento), mas também com grandes colegas, como Shakespeare, Dante, Racine e Molière.

Pois bem, apesar de que o assunto só fosse tratado por Jô ocasionalmente e em tom de blague, guardo na memória o relato de que a manga de seu vestido de noiva havia desaparecido na véspera do casamento ou mesmo na manhã da cerimônia. E Italina, usando uma mesinha de tripé cujas batidas no chão indicavam letras, foi quem indicou que a tal peça se encontrava no fundo de alguma gaveta em armário pouco usado. Talvez outros casos desse tipo nos foram contados, porém não guardo deles a menor lembrança.  

Mas presenciei coisas estranhas em nosso apartamento na rua Joaquim Nabuco, em Copacabana.

Em certa época, foram organizadas sessões em que se buscava entrar em contato com espíritos usando um copo. Esse tipo de coisa se assemelha ao fenômeno das mesas girantes, neste caso dispondo as letras do alfabeto para formar um círculo. Cada participante põe um dedo acima do copo, que se movimenta articulando palavras e frases em resposta ao que lhe for perguntado. Essas sessões, que reuniam umas quatro ou cinco pessoas ligadas à mãe (pois o pai nunca participou de nenhuma delas), eram conduzidas como meras brincadeiras, feitas à luz do dia e sem que ninguém do grupo desejasse de fato se comunicar com algum parente ou amigo morto pois a primeira pergunta, quando copo começava a se mover, era quem estava ali presente.

Eu ficava de fora, observando, e não sei de fato como o copo se movimentava, como também não me lembro da natureza das “conversas”. No entanto, certa tarde o copo subitamente tomou grande velocidade e foi se estilhaçar numa parede a mais de um metro de distância. Diante do pasmo generalizado, os cacos foram recolhidos, as letras jogadas na cesta de papéis e sabiamente nunca mais Jô recorreu àquela espécie de diversão.

De outra feita, a mãe recebia um conhecido numa noite em que pelo menos eu e Lucia também estávamos presentes. Em certo momento, o visitante elogiou uma compoteira de vidro em forma de galinha que (se não me engano) era uma peça antiga e ficava em cima de um estreito aparador onde havia outros bibelôs. No que ele terminou o elogio, desprendeu-se da parede acima do aparador uma gravura de Picasso que estraçalhou a galinha sem atingir nenhum dos outros objetos que a circundavam. A visita obviamente se encerrou minutos depois, e sempre me vem à cabeça  a alegação, sei lá se verdadeira ou não, de que certas pessoas invejosas são capazes de matar uma planta em nossas casas com um simples elogio.

Dois episódios de mediunidade ficaram na minha memória e contam com outras testemunhas que podem confirmar sua autenticidade. O primeiro envolve uma ocorrência até banal mas nem por isso menos significativa.

Quando eu já namorava a Lucia, certa noite ela telefonou cedo para dizer que dormiria na casa de uma colega no Leblon pois iam estudar juntas para uma prova na PUC. Como era comum, fiquei lendo na varanda até mais tarde na companhia da Jô depois que o pai e os irmãos já haviam se recolhido a seus quartos. De repente, ela me disse que fosse à porta do prédio porque Lucia estava querendo entrar. Expliquei que isso era impossível, uma vez que ela estava estudando na casa da amiga e lá dormiria. De pouco valeu a explicação porque Jô insistiu, já agora em tom aflito, que eu fosse abrir a porta.

 Sabendo que era inútil permanecer sentado com o livro nas mãos, caminhei pelo corredor em direção à porta de vidro da entrada… e – incrivelmente – Lucia de fato se aproximava naquele justo momento. Feliz por eu ter aparentemente captado sua mensagem, contou que decidira ir dormir em casa, na Urca, mas, no meio do caminho, resolveu me ver e saltou do ônibus, subindo a rua quase deserta enquanto repetia mentalmente que eu abrisse a porta. Óbvio que, naqueles idos do fim da década de 1950, nem se sonhava com telefones celulares e os bares de onde ela poderia fazer uma chamada já estavam fechados. Óbvio também que, como lhe falei, a transmissão de pensamento só encontrou um receptor na mente de Jô pois eu nada havia captado de seus apelos.

O segundo episódio, profundamente trágico, foi assim descrito por meu irmão Bruno:

Jô era uma mulher sensitiva, talvez uma médium. Vivi uma experiência especial com ela, em função desta capacidade incomum dela. À noite, no dia seguinte à minha prisão e à primeira sessão de tortura, tentei me comunicar mentalmente com ela, para que soubesse que eu fora preso. Ela estava escrevendo uma carta para Jório e, nela, relata que estava me sentindo ao lado dela, machucado e sangrando, com uma calça jeans e sem camisa. Não tenho dúvida de que nos comunicamos – naquele transe – mediunicamente, seja lá o que for que isto significa.”

Sim, eu estava a essa altura em Montreal e me correspondia regularmente com a mãe, recebendo as notícias dramáticas do Brasil e lhe contando de minha vida complicada no primeiro posto. E, numa dessas cartas, de repente a caligrafia dela se transformou, as letras ficaram maiores e as frases mais curtas, quando Jô disse que sentia a presença angustiada e angustiosa de Bruno, cujo paradeiro desconhecia desde que ele entrara na clandestinidade. Dias depois alguém telefonou para ela e disse apenas: “Bruno caiu.” E, quando Jô pôde enfim visitá-lo na prisão, ficou sabendo que meu irmão lhe enviara o apelo em momento de total desespero quando, creio eu, seus algozes ameaçavam matá-lo. Pena que essa carta se perdeu numa das minhas mudanças, mas foi lida por Lucia e objeto de comentários entre todos os envolvidos desde aqueles anos de chumbo.

Por Jorio Dauster