O Papel do Tradutor – Entrevista para O Globo

– O papel do tradutor perdeu importância com o novo sistema adotado por muitas editoras brasileiras, que divide diferentes partes da tradução em vários profissionais?

R – A tradução não precisa ser uma atividade solitária, e eu há muitos anos trabalhei por vontade própria com amigos nas versões brasileiras de “O apanhador no campo de centeio” e “Nove estórias”, de J.D. Salinger, assim como em “Fogo pálido”, de Vladimir Nabokov. Esses trabalhos a quatro ou seis mãos podem ser muito gratificantes quando os parceiros se obrigam a encontrar soluções compartidas para difíceis problemas presentes no texto original. Obviamente, circunstâncias tão especiais não costumam ser reproduzidas quando a editora faz a escolha dos profissionais que participarão da tarefa e também se encarrega de homogeneizar o texto final, mas o desprestígio do ofício de tradutor no Brasil é bem anterior ao sistema de compartilhamento conduzido por um número crescente de editoras. Quantas vezes alguma resenha literária faz qualquer referência ao trabalho do tradutor? Pelo jeito, todos os nossos ilustres críticos literários parecem acreditar que a versão brasileira resultou de algum programa eletrônico!      

– Para um tradutor, o que muda trabalhar em fragmentos de um livro em vez do livro inteiro? Pegar apenas o início, ou o meio ou o fim de um livro atrapalha a compreensão do texto? Pode citar exemplos ou relatar experiências em que isso aconteceu?

R – Recentemente fui convidado a participar de uma “coletiva” quando a Intrínseca decidiu lançar, em prazo muito curto, a versão brasileira da biografia de Salinger (com esse título), um livro alentado que exigiu a colaboração de cinco profissionais. No meu caso, fiquei bem feliz porque me couberam os trechos de autoria do próprio biografado, contendo em boa parte passagens que eu mesmo havia traduzido anteriormente nas edições de “O apanhador”, “Nove estórias” e “Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação”. Também participei com outros colegas de coletâneas de histórias de horror, de John Cheever, de Tennessee Williams e de R.L. Stevenson, mas nesses casos se tratou de peças individuais e o tradutor de cada conto está claramente identificado.

– O tradutor hoje tem menos tempo para trabalhar em um livro?

R- O mercado livreiro no Brasil se sofisticou e, como é natural, as editoras frequentemente buscam acelerar o lançamento de obras que são best-sellers no exterior. Já recusei diversos trabalhos por não aceitar os prazos exíguos indicados pelas editoras porque não admito comprometer a qualidade do que faço. Acho que cabe a cada tradutor fazer igual avaliação, embora também creia que não interessa às boas editoras impor condições que sacrifiquem o produto final.

– Percebe uma insatisfação dos profissionais da tradução diante das novas dinâmicas de trabalho impostas pelas editoras?

R – Meu convívio com outros colegas de ofício é extremamente limitado, restringindo-se a trocas de mensagens eletrônicas e a situações em que apoio as iniciativas de gente corajosa, como a Denise Bottmann, na sua cruzada contra as editoras-bandidas que plagiavam os trabalhos de tradutores em sua maioria já mortos.

–  O que os tradutores podem fazer para exigir melhores condições de trabalho? 

R – Como traduzo por amor à arte, tenho a vantagem de só aceitar os autores e as obras que me apetecem, além de, como disse antes, não admitir prazos fatais capazes de representar uma pressão deletéria. Certamente gostaria que todos que labutam nessa área pudessem gozar de condições semelhantes e que também obtivéssemos uma remuneração mais condizente com o imenso esforço que é despendido num livro de trezentas ou mais páginas. De todos os autores que traduzi, Philip Roth é o único que exige que a editora pague ao tradutor 1% da receita auferida com a venda de seus livros no Brasil – e seria muito bom se essa moda pegasse! Mas acho que já ficaríamos bem mais contentes caso nosso ofício tivesse aqui o reconhecimento e o respeito que desfruta em outras terras.